1 de set. de 2006

Direito ao Mau Gosto* - por Manuel Menezes de Sequeira

O DL 176/98, constitutivo da Ordem dos Arquitectos (OA), decreta que é sua atribuição “admitir e certificar a inscrição dos arquitectos, bem como conceder o respectivo título profissional”, e que “só os arquitectos inscritos na Ordem podem [...] usar o título profissional de arquitecto e praticar os actos próprios da profissão”. À luz deste decreto, e sobretudo de um suposto “direito à arquitectura”, a OA vem defendendo a revogação do DL 73/73, que permite o exercício da profissão por não arquitectos.

Mas o que é o “direito à arquitectura”? Não se trata do direito a exercer arquitectura, a projectar e a edificar, nem tão pouco de conferir esse direito, já existente, aos membros da OA. Trata-se, sim, de conferi-lo exclusivamente aos membros da OA. Sendo esta interpretação politicamente inconveniente, a OA tem usado a expressão sobretudo na acepção de direito de todos à arquitectura. A retórica é a de que existe um interesse geral, um “direito colectivo”, que colidiria e se sobreporia ao direito de cada um escolher a quem entrega o projecto da sua habitação.

Não existe tal “direito colectivo”. Há cidadãos que, na sua liberdade, pretendem exercer uma das mais antigas actividades humanas, como a presidente da OA reconheceu em 21 de Maio de 2003, na discussão na AR da petição sobre o “direito à arquitectura”: “todas as famílias trazem consigo [a disponibilidade para a construção], na vontade de construir o seu abrigo, a sua casa”. Há também arquitectos, que pretendem exercer a sua profissão em igual liberdade. Ambas as liberdades, a do cidadão comum que pretende erguer um edifício e a do arquitecto que pretende exercer a sua profissão, são garantidas pela legislação actual. Os clientes podem escolher o técnico que entenderem para projectar os seus edifícios, os arquitectos podem instalar-se onde quiserem e dedicar-se a projectar.

No texto da petição diz-se que o “direito à arquitectura” é “decorrência lógica dos Direitos à Habitação e Urbanismo e ao Ambiente e Qualidade de Vida consagrados na Constituição da República Portuguesa”. O Artigo 65º da Constituição afirma que todos têm "direito [...] a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar". Se a consagração destes direitos na Constituição é em si mesma discutível, não é menos verdade que eles são compatíveis com o DL 73/73, pois os arquitectos não são os únicos capazes de projectar habitações nas condições indicadas. Mesmo que o fossem, não se poderia com isso justificar a obrigatoriedade da assinatura de arquitecto nos projectos, pois não faz sentido impor um direito a quem dele beneficia: tratar-se-ia da pior forma de paternalismo político.

A defesa da liberdade individual face a um falso direito colectivo é suficiente para rebater a intenção da OA. No entanto, vale a pena também analisar a ideia de que a qualidade arquitectónica aumentaria com a obrigatoriedade da assinatura de arquitecto. Sendo verdade que muitos dos edifícios em Portugal não podem considerados como arquitectura e que muitos deles não têm projecto de arquitecto, não é menos verdade que há muitos edifícios de arquitectos que também não podem ser classificados como arquitectura. Cito em segunda mão José Augusto França (Diário de Notícias, 2002/12/22):

No domínio da arquitectura, a palavra [mamarracho] pode ser empregue porque muitos mamarrachos se têm edificado, como é inevitável, por incúria de várias câmaras municipais e também por falta de talento de muitos arquitectos e de gosto da maior parte dos clientes.

Em última análise é o gosto do cliente que determina o que uma obra será, mesmo se a sua escolha for limitada pela lei. Creio por isso que a revogação do DL 73/73 iria redundar num acréscimo da clientela dos piores arquitectos, dos que respondem de forma acrílica aos clientes e que de arquitectura possuem apenas um diploma. Creio ainda que a qualidade arquitectónica jamais melhorará por decreto. Mas, mesmo admitindo que creio erradamente, a revogação do DL 73/73 proposta pela OA constituiria uma violação de um direito básico dos portugueses: o direito a ter mau gosto e a exercê-lo.

Março de 2005

*originalmente publicado no semanário Domimgo Liberal

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