3 de out. de 2006

A Memória do Burro - por Janer Cristaldo

Recebi não poucas mensagens nas últimas semanas, todas elas transbordando de indignação, contra Lula e o PT. Em uma delas, uma senhora diz ficar pasma "há mais de um ano" ao ligar o televisor. Mas e nos anos anteriores, minha senhora? Não tinha televisor ou tinha e não ficava pasma? Tais mensagens não me convencem. A indignação é tanta que não pode ser tanta. Mais me parecem lágrimas fingidas de quem um dia votou no PT e hoje não ousa confessar que votou.

Indignado, também estou. Mas não é de hoje. Estou indignado há uns bons trinta anos. Antes mesmo de o PT existir, eu denunciava o PT. Explico. O PT nasceu em 1980. Ora, desde 75, quando colunista da Folha da Manhã, em Porto Alegre, eu desfechava minhas baterias contra senhores como Marco Aurélio Garcia, Tarso Genro, Flávio Koutzii, Luiz Pilla Vares, os pais fundadores do partido no Rio Grande do Sul. Sem falar no que escrevi contra a ideologia que os alimentava. Contra o Tarso, o que escrevi daria uma pequena antologia. Que eram todos comunistas, até as pedras da Rua da Praia sabiam. Mas ai de quem dissesse que eram comunistas! Era um infame delator, um reles dedo-duro. Em pleno regime militar, ser comunista servia como escudo protetor.

Entendo que um adolescente, lá pelos anos 80, votasse no PT. Um jovem ainda não teve tempo de ler o necessário para visualizar o DNA do partido. O PT é filho de uma partouse entre a Igreja Católica e os diversos grupos comunistas e anarquistas que vicejavam no Brasil. Conseguiu consolidar-se uma década antes da queda do Muro. Tivesse surgido depois dos anos 90, não teria cacife para chegar ao poder.

Que pobres diabos que se beneficiam de esmolas estatais votem no PT, isto também entendo. O que não se entende é ver pessoas adultas e bem informadas, intelectuais, funcionários públicos e professores universitários votando em um partido que nasce obsoleto, em um candidato tosco e semi-analfabeto. Pior ainda, que ostenta como virtude sua falta de instrução. Verdade que desde fins do século XIX alimentou-se o mito da salvação pelo proletariado. Ora, os eleitores de hoje tiveram mais de um século para constatar que proletários não salvam ninguém. O PT nasceu no Estado mais politizado do país, embalado pela USP e pela Igreja. Por essa mesma USP que foi a grande difusora do marxismo no Brasil e por essa mesma Igreja que o adotou através da sedizente Teologia da Libertação. A eleição de Lula, apoiada pelas elites intelectuais do país em pleno século XXI, significou que estas elites ainda vivem espiritualmente no século XIX.

É corrente afirmar-se que Lula comprou o voto de milhões de miseráveis com a bolsa-família. Claro que comprou. Mas o bolsa-família é extensão e cópia dos programas assistencialistas de Fernando Henrique Cardoso, como o PETI, bolsa-escola, vale-gás. O aprendiz de caudilho gostou da idéia, ampliou-a e deu-lhe novo nome. Em vez de comprar deputados a varejo, preferiu comprar eleitores a granel. O povo tem a memória do burro, dizia Martín Fierro, que nunca olvida onde come. Fernando Henrique Cardoso engendrou Lula. As aposentadorias milionárias concedidas aos bandoleiros que tentaram um dia transformar o país em republiqueta soviética, se hoje oneram o Erário, não são criação de Lula, mas do Príncipe dos Sociólogos.

Lula tem um outro tipo de eleitorado que não ousa declinar o nome de seu candidato. São pessoas que, graças à política de juros do atual governo, enquanto sentam num bar sentem os reais pingando aos punhados em seus investimentos. Não por acaso, Lula foi chamado de pai dos pobres (por alusão a Getúlio Vargas, outro demagogo) e mãe dos banqueiros. Os banqueiros são minoria. Mas os investidores são muitos. Enquanto as bolsas do Ocidente e o Ibovespa gozam de boa saúde, é Lula na cabeça. Não importa que seja tosco. Se o que lucram são as migalhas que caem do banquete dos bancos, estas migalhas constituem razão mais do que suficiente para votar em Lula. É o voto envergonhado. Votar em Lula é feio para uma pessoa de bem. Mas o voto é secreto e ninguém fica sabendo em quem votou a pessoa de bem. Estes senhores quase liquidaram a fatura no primeiro turno.

Conheço não pouca gente que considera um acinte a reeleição de Lula. Penso diferente. Acinte foi sua eleição. Bem ou mal, o Brasil é uma nação dinâmica, com pretensões à modernidade. E houve por bem eleger o rebotalho do socialismo. As eleições foram agora zeradas e assumem um caráter plebiscitário. Não me espantaria que o Supremo Apedeuta as ganhe. Mentir sempre deu mais lucros do que falar a verdade. Tanto que um presidente implicado em toda sorte de falcatruas, diariamente denunciadas na imprensa, conseguiu nada menos que 48 % dos votos. Lula mente a cada palavra que diz, se contradiz a cada dois períodos, se julga um Cristo redivivo a cada acesso de megalomania. Nada disso foi suficiente para que os eleitores o repudiassem. Há quem ache, antes do tempo, que Lula perdeu as eleições. Perdeu o primeiro turno. Por enquanto, continua na posição de vencedor.

Quem perdeu mesmo as eleições foram os institutos de pesquisa. Desde o início da campanha, atribuíram a Lula uma vitória inconteste. Ao acaso: entre 22 e 25 de agosto, em pesquisa feita em 24 Estados, o CNT/Sensus dava a Lula 62,3% das intenções de voto. A três dias das eleições, os institutos Datafolha e Ibope lhe conferiam 53% dos votos válidos. Alckmin, nas pesquisas, só com muito boa vontade chegou aos 30%. Os resultados aí estão: Lula, 48,60 % e Alckmin 41,63 %. As pesquisas, que se pretendem científicas, trabalham sempre com uma margem de erro de dois pontos percentuais. O resultado superou de longe as margens de erro.

Que ninguém se iluda. País que elegeu um analfabeto pode perfeitamente reelegê-lo. Que me conste, o nível de inteligência nacional não aumentou em nada de 2002 para cá. Não vejo vergonha maior na reeleição de Lula. Vergonha é este senhor ter chegado aonde chegou.

Capital Intelectual - por Ralph J. Hofmann

Uma crônica de Cláudio de Moura e Castro no “Ponto de vista” da Veja e um comentário do Galvão Bueno no decorrer do jogo entre a Austrália e o Brasil me lembraram um assunto em que o Brasil, por se apegar a uma mentalidade cartorial e uma certa xenofobia muitas vezes deixou de progredir.

Ao comentar o jogo Galvão Bueno chamou atenção à excepcional, agradável e progressiva sociedade da Austrália, com uma enorme quantidade de nacionalidades diferentes que vieram a desenvolver o país.

O que Galvão Bueno não mencionou foi que grande parte desses que na década de cinqüenta do século XX eram chamados de “New Australians” veio ter ao país após 1945. Enquanto outros países faziam mil exigências para aceitar imigrantes europeus dos campos da UNRRA (United Nations Relief and Relocation Agency), os australianos andavam pelos campos procurando pessoas que desejassem enfrentar uma vida bastante difícil, num país onde quase tudo ainda estava por fazer.

Em 1968, após a “Primavera de Praga”, novamente a Austrália enviou pessoas a Viena, onde se acumulavam muitos dos egressos da antiga Checoslováquia, e dessa vez concentrou-se em fazer a triagem e recrutar pessoas com alta escolaridade, com famílias estáveis. A Qantas, empresa aérea da Austrália foi contratada para enviar um ou dois aviões “charter” semanais com colonos à Austrália. As pessoas recrutadas iam conforme uma “lista de compras” do governo de talentos que iam desde técnicos até Doutores. A absorção dessas pessoas na sociedade foi extremamente rápida. Naturalmente médicos e engenheiros civis tiveram de prestar exames, inclusive sobre as normas australianas de trabalho.

À época cheguei a questionar por que, o Brasil, que sofria uma fuga de cérebros qualificados não estaria copiando os australianos.

A explicação está parcialmente no artigo de Cláudio de Moura e Castro. No Brasil até inventor precisa de diploma. Nos meus primeiros anos na universidade em Porto Alegre conheci um físico nuclear formado no Rehovot em Israel. Era brasileiro. Aqui não podia lecionar em cursos de graduação ou sequer em escolas do ensino médio. Na falta de empregos para físicos passou a lecionar em cursinhos pré-vestibulares onde se tornou uma grande estrela. Mas para ensinar num colégio estadual teve de repetir todo o curso de física. Só que os professores não raro o chamavam para dar aula.

Nos anos setenta encontrei outra distorção semelhante. Dois jovens belgas, um engenheiro mecânico, o outro engenheiro eletrônico, numa época que nenhuma universidade brasileira havia formado sua primeira turma de engenheiros eletrônicos, foram trazidos ao país num programa de imigração incentivada, para trabalharem no setor de Pesquisa & Desenvolvimento de uma empresa nacional. Um ano depois a empresa decidiu encerrar seu programa de pesquisa. Despediu os jovens. Enamorados pelo país, envolvidos com meninas brasileiras, eles decidiram ficar aqui. Passaram a projetar equipamentos industriais sob encomenda para produção por terceiros, para depois de ter um certo volume de trabalho e renda, um após o outro se sujeitarem a voltar à universidade por um ano para obterem um diploma brasileiro Não conseguiram. Foram metodicamente e repetidamente multados pelo CREA. Lembro ainda que um dos dois belgas tinha atestados da Ferrari. Passara todas as férias da universidade trabalhando no desenvolvimento dos sistemas de telemetria que vieram a ser vitais na Fórmula 1. Quem examinou os currículos universitários deles, outro físico nuclear brasileiro desempregado, disse que o currículo deles era muito superior ao exigido de engenheiros brasileiros.

Na impossibilidade de trabalharem em engenharia reversa e desenvolvimento passaram a ser vendedores técnicos e depois montaram um apequena indústria. Podiam ser donos de indústria. Mas não podiam ser engenheiros. Nem mesmo para elaborar projetos a serem produzidos por indústrias com responsáveis técnicos próprios.

A Europa e os Estados Unidos estão cheios de engenheiros e arquitetos formados no Brasil, fora outras profissões. Basta mostrarem sua competência.

Agora temos no Brasil meio-médicos, meio-curandeiros cubanos, vacinas cubanas para vírus que não existem no Brasil. Isso pode.

Em 1945 os médicos que chegavam ao Brasil da Áustria, Hungria e Alemanha tiveram de trabalhar associados a um médico brasileiro por alguns anos, em lugares onde faltavam médicos e apenas depois prestar exames. Era um bom sistema. Aliás era o sistema na Inglaterra, Estados Unidos e na maioria dos países que recebiam imigrantes. E se justificava, pois não havia como verificar a legitimidade de diplomas de países que não raro haviam sido varridos do mapa.

Mas a verdade é que a Austrália obteve serviços de pessoas que, não apenas faltavam no país como teriam custado bilhões de dólares para educar. E isto inclui torneiros mecânicos, desenhistas e publicitários.

O Brasil não teve oportunidade de usar um tal atalho ao desenvolvimento. Se emparedou atrás de uma reserva de mercado.

Com autorização do Ralph J. Hofmann