17 de abr. de 2007

Brincando com fogo - por João Mellão Neto

Militares não são cidadãos comuns. A simples circunstância de que têm como dever arriscar a vida pela Pátria já faz deles pessoas diferenciadas. Desde o início da civilização, já se tornou senso comum a necessidade de que a cultura militar - seus valores, convicções e regras de conduta - deve ser diversa da que rege os civis. Ninguém, em sã consciência, enfrenta voluntariamente a eventualidade da morte sem ter fortes razões para fazê-lo. Para os soldados, acima da própria vida, há que existir valores tais como a honra pessoal, o sentimento incondicional do dever, a defesa a qualquer custo da Pátria e, muito importante, uma exaltação de espírito permanente.

É por esta razão que os militares despendem boa parte de seu tempo em paradas, desfiles e marchas, embalados por hinos marciais, portando estandartes e bandeiras e bradando a plena voz palavras de ordem e lemas próprios à sua função. A obediência cega à hierarquia e disciplina extremamente rígida são princípios basilares - e não poderia ser de outra forma - de toda e qualquer organização com fins militares. Não se admitem tolerâncias nem liberalidades. Sem a obediência cega às ordens superiores e um comportamento impecável se torna impossível formar uma tropa em condições mínimas de enfrentar forças inimigas e, eventualmente, vencê-las.

Os brasileiros, em geral, são avessos à ordem, à lei e à autoridade. O “jeitinho brasileiro” é uma instituição nacional. O “modo Macunaíma de ser” está impresso no nosso DNA cultural. Mais uma razão para que nas Forças Armadas tais características sejam fortemente reprimidas e o senso do dever seja incutido com maior severidade.

Todo este preâmbulo se justifica para demonstrar a gravidade das primeiras atitudes do presidente Lula no enfrentamento da rebelião dos sargentos controladores de vôo. Em estado de guerra, tal motim deveria ser reprimido com toda a força, seus participantes imediatamente, presos e os responsáveis seriam submetidos a corte marcial e fuzilados sem clemência.

Ora, dirão alguns, não estamos vivendo uma guerra e o sistema de controle de vôo não deveria ser predominantemente militar (cerca de apenas um quarto dos controladores de vôo, no Brasil, são civis.)

Não sou contrário à desmilitarização do sistema de controle de vôo. Na maioria dos países desenvolvidos tudo funciona bem e este serviço é exercido por civis.

O fato é que, no Brasil, a rebelião ocorreu num momento em que o controle de vôo ainda está subordinado à Aeronáutica, seus operadores são sargentos e, portanto, sujeitos ao regimento militar. Sendo assim, não se trata de uma simples greve, mas de um gravíssimo motim. E não se negocia nada com militares amotinados.

Lula não atentou para as seriíssimas conseqüências de seu modo sindical de agir e ordenou a seus ministros que fossem negociar com os rebelados. Estes, para resolver o problema, acenaram com o que não podiam: não-punição para os amotinados e aumento salarial para todos. A Presidência da República, constitucionalmente, não pode fazer nem uma coisa nem outra.

Os sargentos estão sujeitos ao Código Penal Militar e são julgados pelo Superior Tribunal Militar, um órgão do Poder Judiciário. Eles acabarão por ser severamente punidos. Até para servir de exemplo e evitar que novos focos de rebelião contaminem todas as Forças Armadas. A única saída para esse impasse seria a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma anistia para os revoltosos. Isso é improvável que ocorra.

Quanto ao aumento salarial, ele é impossível. Se os sargentos controladores de vôo recebessem uma majoração em seus soldos, ela teria de ser estendida, segundo a lei, a todos os sargentos das três Forças Armadas. Isso, além de altamente oneroso, faria os sargentos passarem a ganhar mais do que os tenentes, seus superiores imediatos. O resultado final é que todo o oficialato das três Forças teria de receber um aumento salarial proporcional ao dos sargentos.

A única saída, em médio prazo, seria a passagem do sistema de controle de vôo para a alçada civil, com o conseqüente desligamento dos sargentos dos quadros da Aeronáutica. Mas isso leva tempo e é uma operação muito mais complexa do que aparenta. Como separar os serviços de defesa aérea - que devem ser mantidos na esfera militar - dos serviços restritos à aviação civil?

Lula foi devidamente enquadrado pelos comandantes militares. O comandante da Aeronáutica chegou a ameaçar acionar o Supremo Tribunal Federal para abrir um processo de impeachment do presidente por crime de responsabilidade. E base jurídica ele tinha de sobra para fazê-lo.

A crise acabou contornada porque nosso incauto presidente voltou atrás, derramou-se em declarações de apreço à hierarquia militar e tachou os amotinados de traidores e irresponsáveis. Ele não precisava passar por mais esse vexame. Bastaria que algum assessor o tivesse orientado sobre os graves desdobramentos que sua atitude de negociar traria. Infelizmente, Lula já demonstrou que escolhe muito mal a sua assessoria.

O último governante que ousou incentivar a insubordinação dos quadros inferiores das Forças Armadas foi João Goulart. E ele acabou sendo deposto logo a seguir.

Com as Forças Armadas não se brinca, em especial porque elas são forças e, ainda por cima, armadas.

Como dizia o filósofo Dahrendorf, as instituições de uma nação são como cabos de alta tensão: à primeira vista são inofensivos, mas basta tocar neles para sofrer terríveis conseqüências. Lula não sabia disso e acabou estorricado.


Como reza a sabedoria popular, quem só entende metade de um problema acaba sendo devorado pela outra metade...
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João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado Federal, secretário e ministro de Estado