18 de set. de 2008

“O mundo existe para acabar num bom livro”


Conversa com os leitores Sobre as atribuições do CNJ, que comentei posts abaixo, chega-me este comentário, que achei bastante interessante. Eu geralmente costumo discordar do Reinaldo em quase tudo. Acredito que leio o blog dele em uma espécie de masoquismo, pois quase nunca passo tanta raiva como quando me deparo com as opiniões dele. De qualquer forma ele tem me ajudado a olhar sempre o outro lado e procurar respeitar sempre a convicção de cada um. Nesse caso eu tenho que concordar com ele. É muita forçação de barra dizer que o CNJ extrapolou sua competência, afinal de contas a resolução só trata de matéria administrativa, qual seja, prestar conta de quantos pedidos de interceptação telefônica foram concedidos pelo juiz. Só, única e exclusivamente isso. O CNJ não pretende determinar quando o juiz deva concedê-la, longe disso. Está exercendo mero controle administrativo, mera coleta de dados. Publicar Recusar (Anônimo) 18:20 Comento Caro leitor, ler aquilo de que se discorda jamais será masoquismo. A única coisa que interessa na leitura — já que um artigo ou um livro não são a nossa vida — é se o texto está bem ou mal-escrito. Nada além. Uma vez entrevistaram o poeta Mallarmé sobre o significado da literatura etc. E sua resposta foi magistral: “O mundo existe para acabar num bom livro” — cito de memória, mas a essência deve ser essa. E, do ponto de vista das letras — de que o jornalismo faz parte, ainda que quase sempre como primo pobre —, é isso o que interessa. Claro, um jornalista não pode vender ficção como se fosse realidade e depois ficar correndo atrás de desmentidos como cachorro caído de um caminhão de mudanças. Mas não duvide: se ele se descuida da inculta e bela, é sinal evidente de que não respeita os leitores e de que fez a opção pela mediocridade. Discorde de mim, é bom. Discorde como discordo de tanta gente por quem tenho imenso respeito — e falo tanto dos vivos como dos mortos. Muita gente diz que demonizo adversários. É mentira. Desprezo e trato a pontapés os que se acham no direito de me censurar ou de me discriminar porque se acham mais humanistas e mais bondosos do que eu. E como se discorda aqui, não é mesmo, leitores!? Recorram a tudo o que já escrevi sobre aborto, células-tronco embrionárias, aquecimento global, ações da PF (quando isso ainda não era uma pauta)... Sobre tais temas, mais publiquei discordâncias do que assentimentos. Sou afetivo com os meus leitores, mas não sou paternalista. Assim faço na vida, em casa, com amigos, em qualquer lugar. Se concordo, digo que concordo; se discordo, digo que discordo. Às vezes, a opinião é incômoda. Quando deixei clara aqui, sem ambigüidades, a minha oposição ao aborto de fetos anencéfalos, o que você acha? Eu sabia que seria minoria, como fui, mesmo neste blog. Se quisesse sempre o aplauso, o “muito bem!”, procuraria me situar num lugar do discurso que contemplasse as três posições básicas: a favor, contra, e o famoso a-favor-e-contra-com-reservas. Mas eu não sou isso. Procuro matizar, discutir, argumentar, ponderar, mas sempre caminhar para um desfecho, como se estivesse tomando ali uma posição, fazendo uma escolha. E, sei, isso pode ser detestável para muita gente. Na resenha que fez do meu livro (posts abaixo), Demétrio Magnoli, como viram, faz-me uma cobrança de princípio sobre práticas adotadas pelos EUA na guerra contra o terrorismo. Na hora oportuna, voltarei ao assunto. Posso conviver perfeitamente com o contraditório. Mas fiquei especialmente contente com um aspecto do seu artigo: ele entendeu o meu compromisso fundamental com a liberdade de dizer, de debater, de falar tudo — ainda que isso possa aborrecer muita gente. Eu, ele e tanta gente não pertencemos a grupo nenhum. Somos o que costumo chamar de a “tribo dos homens sós”. E isso também e insuportável a muita gente.

Ciência ou Slogan?

A inflação das palavras é talvez mais letífera do que o aviltamento das moedas. Montaigne, arguto filósofo, inventou o termo “ensaio” para examinar os vocábulos. A sua idéia, simples como as verdades, se efetivou de maneira metafórica. Com a insipiente inflação das moedas européias, fruto do acúmulo de prata e ouro trazidos pelos ibéricos ao velho continente (roubados dos indígenas sul americanos...) e também produzida pelos moedeiros falsos (que punham em circulação peças sem a liga legalmente certa), o rei da França criou a Casa da Moeda, lugar onde o dinheiro seria pesado, “ensaiado” para definir a sua composição efetiva. Transpondo a providência do monarca para o pensamento (“pensar” e “pesar têm origens comuns, donde ”pesar moedas” e “pesar palavras” são movimentos idênticos de aferir veracidade) Montaigne propõe o Ensaio como estilo. As idéias, enunciados, números, conversas, livros, teorias, deveriam ser pensados e pesados, antes de alguém colocá-los em circulação. Tarefa importante, do mesmo jeito, seria pesar e pensar as idéias já usadas na vida humana, das sarjetas às bibliotecas, destas aos gabinetes do poder. A tarefa de ensaiar não podia ser rápida, devido à composição heteróclita dos elementos fundidos nas moedas. Era preciso saber e paciência.

Já no latim um indivíduo ponderado é dito homo gravis et sapiens, merece fé pública. Nos estultos, cujas bocas desconhecem tramelas, o discurso é leve, imponderável. Em seus lábios as pessoas não encontram algo que inspire confiança. “Eles não encontram a crença, objeto de toda fala. Porque o próprio fim e alvo do discurso é engendrar a crença no ouvinte, mas os boquirrotos são desacreditados mesmo quando dizem a verdade” (Plutarco, Sobre o Falatório).

A demagogia e a propaganda (sobretudo a eleitoral) se fundamentam no palavrório. É difícil pesar (ou pensar) os discursos nos comícios (hoje, nos rádio e televisões)que buscam distrair e também engambelar o eleitor com o barulho emitido pelos candidatos, poderosamente ajudados pelos modernos sofistas, os técnicos do marketing político. Nos últimos tempos, as pesquisas de opinião, ditas “científicas”, servem à propaganda. Os gregos, Platão sobretudo, recusam a opinião (doxa), justo porque ela não é pesada, não é pensamento refletido. A opinião segue rápido do cérebro para a boca (ou para o teclado do computador) e daí para as páginas da imprensa, telas da TV ou microfones do rádio. Todos esses veículos não podem perder tempo com ponderações, análises, pesquisas aprofundadas. O espaço dos jornais e revistas diminuiu, as televisões operam com segundos e minutos, salvo raros programas de debate. O rádio dispõe de tempo maior, mas a sua mensagem também deve ser rápida, para não cansar os ouvidos do público.

Em semelhantes usos do tempo, não resta muito para as igrejas ponderadas (Elias Canetti chama a atenção para as procissões católicas, nunca feitas em correria mas em passo digno e pesado, sério) e para a universidade. O tempo nos laboratórios, arquivos e bibliotecas é uma eternidade, por exigência dos objetos e métodos, se comparado ao das redações. Daí a irritação de jornalistas com os pesquisadores, quando os acadêmicos são intimados a explicar o Big Bang, as descobertas em genética, as teorias sobre Deus em menos de um minuto. O universitário ponderado não aceita o jogo da rapidez, sob pena de cair em descrédito junto aos seus pares e diante dos poderes públicos, até mesmo face à opinião popular...

“Rápido, ligeiro, para não pensar, não perder tempo”. Assim gritava o sargento, quando servi no Tiro de Guerra, nos treinos de ordem unida. Ciência não se faz com ordem unida, às pressas e com garrulice, mas com tempo, paciente inteligência. Salvo, é claro, quando o poder está nas mãos de sofistas, como ocorreu na URSS. Lyssenko fez ciência veloz, seguiu as ordens do Partido onisciente. E ajudou a derrubar o regime devido ao fracasso das colheitas e da economia soviética. Tempo breve é para slogans, nada mais.