27 de jun. de 2006

O arrombamento das instituições - por Marco Antonio Rocha, jornalista

Um espectro ronda o Brasil. Nada que ver com aquele de que falava Karl Marx no seu Manifesto, na Europa de 1848. Não, não é o do comunismo. É o do lulismo, e, ao que parece, sua estratégia tem três etapas. Na primeira, em marcha, Lula e seu estado-maior se encarregaram da limpeza do terreno, que consistiu, basicamente, em tentar arrasar o pouco que as instituições nacionais ainda guardavam de prestígio, acatação e consideração junto ao grande público. A segunda, no devido tempo, consistirá em propor à população, desiludida, novas instituições dentro de uma nova ordem - autenticamente "republicana", diria o ministro Thomaz Bastos. Bem-sucedidas as duas etapas, a terceira imporá aos recalcitrantes a submissão ou a exclusão.

Muitos dirão que isso é pura ficção jornalística. Mas os sinais indicadores - palavras e fatos - não são nada fictícios. Vejamos algumas palavras, recentes, para o futuro mandato Lula. Primeiro, as de Ricardo Berzoini, que se tem comportado como uma espécie de candidato a gauleiter: "(...) estamos promovendo a participação ampla e plural da sociedade na construção de um plano que projete um período de novos avanços." E corroboradas por M. Chauí, A Pensadora: "Vamos fazer um programa, o governo vai governar de acordo com ele. Senão, é tchau e bênção." Faltou lembrar que governos governam segundo planos elaborados, discutidos e aprovados por Parlamentos - pelo menos nas democracias. Mas eis aí o cediço sonho de governar sem instituições, de maneira direta, com "a participação ampla e plural da sociedade".

Muito se engana quem acha que o jargão disfarça a falta de projetos, visa a adiar problemas e a dar a impressão de "humildade democrática", como disse Arnaldo Jabor em seu artigo da última terça-feira, neste jornal. Primeiro, não há falta de projetos - é que "O Projeto" é não-divulgável. Mas dele nos dá conta uma terceira voz, muito conhecedora do esprit de corps da cúpula petista - Cristovam Buarque: "O meu medo é que ele (Lula) queira um terceiro mandato (por meio de uma reforma da Constituição), como fez Chávez, como fez Fujimori." E mais: "Eu temo que ele tenda a governar diretamente com o povo, tirando a intermediação do Congresso."

Segundo, a "humildade democrática" pode ter existido no PT em tempos idos, mas foi para o brejo com a atitude desafiadora, oficializada pela legenda, em convenção, ao avalizar o eufemismo "recursos não contabilizados" para designar a podridão do caixa 2 e com a parábola do chefe aos discípulos - "Fizemos o que os outros sempre fizeram" - lançada em Paris, que mostram o grande menosprezo do bando pela opinião e pelos sentimentos do cidadão honesto.

Terceiro, ao conclamar "ampla participação da sociedade" o objetivo não é adiar problemas: é não resolvê-los e até impedir que se resolvam, para provar que pela via das instituições normais eles não têm mesmo solução. É o que proclamava, aliás, a centúria del fascio, arrebanhada por um herdeiro d e engenho de açúcar, naquele ataque contra o Congresso. Em nome de quê? De fazer avançar a reforma agrária? Mas a reforma agrária está avançando, e muito. Na verdade, está sendo realizada no Brasil a mais ampla reforma agrária democrática que já foi feita no planeta. Então, o objetivo não era fazer avançar o que já está avançando, era fazer o público achar que o Congresso é que atrasa a reforma. Faz parte da tática de desgaste da representação parlamentar.

Ao se servir do "mensalão" de Marcos Valério, o lulismo visava a controlar a Casa das Leis. Talvez não pensasse que a própria denúncia do esquema acabaria por contribuir, ainda mais, para a desmoralização da instituição parlamentar. As CPIs atraíram grande atenção do público para duas pusilanimidades: a do PT e dos seus agentes e a da "pizza", que acabou acontecendo - e prevalecendo aos olhos do público. O Congresso saiu mais desmoralizado do que o próprio PT e do que o chefe do PT.

Há um lucro colateral que ainda vai ser contabilizado pelos estrategistas do lulismo: a desmoralização da Procuradoria Geral da República, que representou contra 40 falcatrueiros, e da CPI dos Bingos, que indiciou 79 malandros. Nem os 40 nem os 79 vão sofrer nada. Por quê? Porque as duas coisas irão ao Supremo Tribunal Federal (STF).

E nós já vimos em andamento a tática de desgaste do Judiciário, que para ser armada exigiu o prévio "aparelhamento" do STF. Disso se encarregou pessoalmente o chefe. Dos 11 ministros, 6 são indicação sua. E o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em artigo publicado quarta-feira no Estado (O novo Supremo), se incumbia de responder, antecipadamente, às suspeitas a respeito da isenção do STF: "O risco" - diz ele - "de aparelhamento do Supremo por um determinado presidente é controlado justamente pela necessidade de aprovação da indicação pelo Senado Federal, que, se não tem o hábito de rejeitar indicações (grifo nosso), exerce um papel dissuasório na eventual intenção do Executivo de realizar indicações inapropriadas". E o Senado é, por acaso, imune a "aparelhamentos"?

Essas e outras doutas ponderações do nosso ministro, no referido artigo, o tornam, desde já, candidato a ingressar na ilustre linhagem de juristas pátrios que, desde o venerável doutor Francisco Campos (apelidado Chico Ciência), de Getúlio Vargas, passando por alguns ex-professores meus, como Gama e Silva e Alfredo Buzaid, formam no denodado escrete dos garimpeiros de doutrinas legitimadoras de interrupções da democracia.

Outra decisiva instituição nacional vem sendo desafiada desde que o nosso presidente, dizendo não saber se seria ou não candidato à reeleição, iniciou uma nada disfarçada campanha eleitoral, ao arrepio da lei. Cada inauguração, cada comparecimento desnecessário a eventos banais, cada conjunto de fotos levantando os braços para comemorar coisa nenhuma, cada cena de TV afagando criancinhas em paragens remotas são meios de testar o tutano da Justiça Eleitoral - como o reajuste de servidores, que opôs os dois presidentes: o da República e o do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Marco Aurélio Mello.

Então, com o Legislativo, o Judiciário e o sistema eleitoral sendo levados no bico e ao desgaste, desculpem-me os colegas do jornalismo econômico - legitimamente preocupados com rombos no INSS, nas contas públicas, na relação dívida/PIB, nas reservas cambiais e demais problemas de uma administração séria -, mas o Grande Arrombamento, que decisivamente determinará os destinos deste país, é o que está sendo cavilosamente cavado na imagem pública das instituições que nos garantem o status internacional de nação democrática.

Publicado originalmente em O Estado de São Paulo - 26/06/06