12 de jun. de 2005

SOMOS O QUE PENSAMOS

por Alberto Oliva, filósofo - publicado no Diego Casagrande

As idéias que povoam nossas mentes têm origens as mais variadas. Algumas são frutos da dura aprendizagem pessoal, outras nos contagiam pela freqüência com que circulam na sociedade. Há também o grupo das que nos foram inculcadas por doutrinadores e professores. É fácil notar que certos tipos de idéia encontram condições mais favoráveis ao seu vicejo em determinados solos culturais. A simpatia por determinadas filosofias contribui decisivamente para que a liberdade anule a escravidão, a ordem controle o caos e o realismo da eficiência se imponha à retórica vazia, ao passo que outros modelos de pensamento ajudam a percorrer o caminho inverso. Caso pretendamos conhecer a sociedade na qual vivemos é fundamental identificar a matriz filosófica das idéias que nela estão difundidas e as causas e razões que fazem com que os estereótipos ideológicos sejam absorvidos como verdades elementares pela maioria distraída. Contrariamente ao que sustenta o materialismo, o mundo caminha enfunado pelos ventos do espírito. Os modos compartilhados de pensar ditam os rumos da vida coletiva. Conhecedores desse fato, de há muito os marxistas sutilmente se livraram da camisa-de-força do materialismo reducionista original. Passaram a adotar o ideologismo – tudo é guerra de idéias - que lhes permite explorar, manipulando ingredientes culturais arraigados na consciência coletiva, as “contradições” latentes e manifestas das sociedades democráticas.

Na formação das mentalidades está a chave para se entender como estilos de pensamento desencadeiam os padrões comportamentais que definem muito da identidade de uma nação. As formas típicas de ação –individuais ou institucionais – mais generalizadas no interior das sociedades estão atreladas a visões de mundo normalmente endossadas sem que se tenha consciência de seu alcance e de suas implicações. As idéias se transformam em fantasmagoria perigosa quando se instalam nos cérebros sem que os hospedeiros saibam como as adquiriram. Com isso, passam a papagaiá-las sem saber exatamente o que são e em que se fundamentam. Idéias absorvidas aleatoriamente enfeitiçam o intelecto gerando uma adesão emocional ao que deveria ser tratado com o máximo rigor crítico. Tirante um ou outro esforço de pensamento questionador, somos repetidores dos erros alheios. É raro encontrar alguém que desconfie que as crenças mais difundidas foram geradas em palafitas apoiadas em pântanos ideológicos.

As idéias que se disseminam ajudam a formar atitudes e a tornar certos tipos de conduta recorrentes. Para que se tenha uma radiografia espiritual do estado geral de um país é imprescindível saber que idéias organizam e dirigem sua “consciência coletiva”. Por que as idéias socialistas, sobretudo nas versões mais simplistas, têm muito mais penetração por aqui que as idéias de extração liberal? Uma resposta apressada poderia atribuir esse fato ao capitalismo selvagem, à subsistência de abismos sociais em nossa pátria mãe gentil. Mas a evidência empírica mostra que as idéias socialistas pouca influência exercem em muitas sociedades pobres e profundamente desiguais. Um dado curioso é que, no Ocidente, os partidos comunistas sempre tiveram mais força nos países católicos. As idéias socialistas continuam pegando carona na censura religiosa à competição e ao lucro. A verdade é que sociedades com histórico de patrimonialismo levam as pessoas a acreditar que o Estado é a força capaz de engendrar o bem-estar coletivo: empregar todo mundo e distribuir o que a natureza pródiga oferece. E, last but not least, dividir a renda nacional de forma justa e equânime. Poucos se dão conta de que esse tipo de mentalidade produz estagnação social decorrente da falta de iniciativa individual.

A força das idéias socialistas decorre de sua capacidade de aprofundar a velha visão, instalada no subconsciente coletivo desde a época colonial, de que as provisões – o conspícuo das elites e básico do povo – dependem mais do Poder do Estado que do Fazer da Sociedade. Não é coincidência que governos autoproclamados socialistas, como até outro dia gostava de se apresentar o do Estado do Rio de Janeiro, tiram dinheiro dos serviços básicos de saúde e educação para aplicá-lo em assistencialismo que ilude pobres e miseráveis. A distribuição de benesses para as elites – dos subsídios aos altos salários da burocracia - e de migalhas para o povão nunca causaram a devida indignação cívica porque se harmonizam com a mentalidade que começou a prosperar desde o alvorecer do Brasil. O socialismo, que por estas plagas se confunde com o mais deslavado estatismo, se coaduna com a expectativa do atendimento de cima para baixo tanto dos fortes quanto dos fracos, tanto dos “amigos do rei” quanto dos deserdados. Da conquista e preservação de privilégios se nutrem os favorecidos e da ilusão da esmola vivem os que sofrem de carências e privações graves.

No Programa “Canal Livre” da Rede Bandeirantes, o eminente antropólogo Roberto da Matta declarou que o século XXI será o século da igualdade. Não lhe foi dada a chance de detalhar seu pensamento. O conceito de igualdade está longe de ser unívoco. Se a equalização for associada a projetos políticos intervencionistas, capitaneados por Estados neo-absolutistas, assistiremos de novo a matanças ideológicas como as cometidas no século XX. Mais que o período novecentista, o século XX foi, até 1989, marcadamente antiliberal. Os EUA, por lá ser forte o consenso em torno da economia de mercado, resistiram à vaga estatista/intervencionista e foram premiados por isso. Muito do atual ódio antiamericano deriva da vitória, no apagar do milênio, do liberalismo sobre o socialismo.

O século XXI não pode reeditar o laboratório de igualação dirigido por Estados hipertrofiados. O custo disso foi muito elevado em termos de vidas humanas e retrocessos materiais. A engenharia social põe em ação engrenagens que trituram vidas a pretexto de tornar os homens iguais. Se o objetivo é tornar as pessoas menos desiguais, o desafio consiste em como fazer isso sem transformar o Estado no Leviatã que esmaga indivíduos com a desculpa de acabar com suas diferenças. Para que se preserve a liberdade, é necessário que a busca por maior igualdade leve as pessoas a assumirem voluntariamente formas de associação que as façam menos desiguais material e simbolicamente. Do contrário, o máximo que se conseguirá é despertar os velhos fantasmas do totalitarismo em alguns lugares sofridos deste planeta.