"...que o aluno saiba escolher as modalidades adequadas a falar
com gíria, a falar popularmente, a saber entender um colega que veio do Norte
ou que veio do Sul, com os seus falares locais, e que saiba também, nos
momentos solenes, usar essa língua exemplar, que é o patrimônio da nossa
cultura e que é o grande baluarte que esta Academia defende."
|
(...)
Falar do tema que me foi proposto, A norma culta em face da democratização do ensino, é aparentemente um tema fácil, mas um tema extremamente complicado tanto do ponto de vista de teoria da linguagem, como do ponto de vista de pedagogia. O que vem a ser uma norma e o que vem a ser uma norma culta no idioma? Podemos dizer que este assunto, que se vem prolongando e debatendo desde a Antigüidade clássica, desde os retóricos e os gramáticos gregos, e os dialéticos gregos e romanos, este assunto ganha, ultimamente, uma dimensão muito especial.
Falar do tema que me foi proposto, A norma culta em face da democratização do ensino, é aparentemente um tema fácil, mas um tema extremamente complicado tanto do ponto de vista de teoria da linguagem, como do ponto de vista de pedagogia. O que vem a ser uma norma e o que vem a ser uma norma culta no idioma? Podemos dizer que este assunto, que se vem prolongando e debatendo desde a Antigüidade clássica, desde os retóricos e os gramáticos gregos, e os dialéticos gregos e romanos, este assunto ganha, ultimamente, uma dimensão muito especial.
De modo que é muito complexo falar de
correção da linguagem, da correção idiomática, sem fazer referência a esse
esforço dos grandes teóricos da lingüística, principalmente os teóricos do
final do século XIX e do início do século XX. São teorias que vêm reformular
este conceito de norma, este conceito de norma culta, tanto no plano teórico da
linguagem, como no plano da pedagogia, das línguas, e em especial, da língua
portuguesa.
Deixo de lado aqui aquele grupo de
lingüistas que acreditam que as preocupações prescritivas da gramática
tradicional são inconseqüentes do ponto de vista científico, e portanto, sem
nenhum interesse para a lingüística e inoperantes para a vida livre da
linguagem, razão por que recomendam que os gramáticos e professores de língua
deixem seu idioma em paz. Desta confusão, fala o nosso saudoso Mattoso Câmara,
com o peso da sua competência. Cito-o não só para reviver a memória do nosso
primeiro lingüista, mas e por isso mesmo, para mostrar que a crítica parte de
um lingüista e não de um gramático ou de um professor de língua.
"...a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante
da gramática descritiva, científica..."
|
Normativa/descritiva - Diz o Mattoso: "Assim, a gramática
normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática descritiva,
científica, mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática
dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas
disciplinas, e pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações
normativas".
São muitos os aspectos que merecem
comentários sobre este tema, mas vou escolher um aspecto que considero
importante, tanto no plano teórico, quanto no pedagógico, o que se há de
entender como correção de linguagem.
Infelizmente, como disse, o assunto tem
sido descurado na teoria lingüística, sob a enganosa impressão de que se trata
de questão de pouca monta. Infelizmente, o problema demandaria maior atenção de
lingüistas e de teóricos da linguagem, pois, da certeira conceituação do que
vem a ser correção de linguagem, adviria orientação segura à elaboração de uma
gramática normativa, por ter como função precípua esse tipo de questão.
Na literatura científica, um dos
primeiros lingüistas em se preocupar como tema foi o sueco Adolf Noreen, cujas
idéias foram discutidas por outros especialistas, entre os quais cabe menção
especial ao conhecido lingüista e teórico dinamarquês Otto Jespersen, num livro
de divulgação escrito por solicitação do Instituto Norueguês de Pesquisa
Comparada em Cultura Humana, saído em Oslo em 1925, e traduzido para o inglês e
daí vertido para outras línguas.
Três fatores - Depois de apontar adesões e oposições de
compatriotas de Noreen e Jespersen, informa-nos que, para o lingüista sueco, o
problema dos critérios de correção de linguagem está ligado a três fatores,
dois já conhecidos dos investigadores, fatores que para Noreen estavam sob
suspeição, e um, o último de sua responsabilidade, o chamado
histórico-literário, o histórico-natural, e o último que ele defende, que é o
racional.
Por histórico-literário, compreende o
fator que se fundamenta no prestígio de autores literários de uma época
considerada áurea, em que escreveram aqueles que se consideram clássicos, e
assim modelares no que toca à correção de linguagem.
Tanto nosso autor como seus críticos
mostraram a relativa inoperância desse fator, já que nem tudo que os clássicos
do passado usaram tem ou pode ter vigência hoje, e depois são, do ponto de
vista lingüístico, muito frágeis as razões que justificam a escolha de um
período histórico, em detrimento de outro também do passado. Todavia, este
critério tão discutível foi, durante muito tempo, a orientação que se imprimiu
nos estudos com vistas à correção de linguagem, apesar de vozes autorizadas
alertarem para o perigo do processo, como a de Silva Ramos, um dos acadêmicos
fundadores desta Casa, distinto professor de Português do Colégio Pedro II, que
afirmava mais ou menos isso: "No altar dos clássicos, encontra-se quase
sempre perdão para todos os erros de linguagem".
O segundo fator, o histórico-natural,
se baseia na idéia muito divulgada no século XIX, e vigente em alguns
lingüistas de hoje, segundo a qual, sendo a língua um organismo vivo em
perpétua mudança, ninguém deve perturbar essa mudança, mas, ao contrário, deve
deixá-la livre em plena liberdade. É o que insinua, por exemplo, o livro do
lingüista norte-americano Robert Hall, em 1950, Leave your language alone
(Deixe sua língua em paz). O mesmo Noreen tem por absurda e anárquica
essa maneira de encarar a questão do correto e do erro em língua.
Para o sueco, só resta nesta matéria
levar em conta um fator a que chamou racional, e que consiste em apelar para o
bom senso. Aceitando as críticas que lhe foram endereçadas, resume assim seu
parecer: "A melhor expressão é aquela que alia, à inteligibilidade
necessária a maior simplicidade".
...sete critérios:
o critério da autoridade; o critério geográfico; o critério literário; o critério aristocrático; o critério democrático; o critério lógico; e o critério estético. |
Critérios - Depois de analisar alguns pontos débeis da
proposta de Noreen, Jespersen parte para fixar os seus critérios de correção de
linguagem, elencando para tal esses sete critérios: o critério da autoridade; o
critério geográfico; o critério literário; o critério aristocrático; o critério
democrático; o critério lógico; e o critério estético.
1 (autoridade) - Consiste o critério de autoridade na existência de
um poder central donde emanam recomendações, ou mesmo determinações, que levam
ou obrigam a que a comunidade se regule pelas normas fixadas. É o caso, por
exemplo, de Academias atuantes como a Academia Francesa, a Academia Espanhola,
a Academia Italiana, e agora, a Academia Brasileira de Letras, com estes
cursos, sendo que as primeiras editam gramáticas, boletins e dicionários, onde
se recomendam uma ortografia oficial, se registram a significação normal mais
usual das palavras e certas construções gramaticais havidas por mais
consentâneas com a tradição escrita culta.
Aqui mesmo está um livro recente, La
Crusca risponde, que é um livro dos acadêmicos da Academia de La Crusca (crusca
em italiano quer dizer farelo), então, o objetivo da Academia de La
Crusca era exatamente separar a farinha do farelo, isto é, o joio do trigo, a
fim de que os italianos tivessem, pelo respaldo da Academia, as melhores
palavras, as melhores construções e as melhores formas verbais. Aqui também,
por exemplo, um livro publicado, relativamente recente, Novedades en el
dicionário acadêmico, que é um trabalho com o título La Academia Española
trabaja; é uma obra em que também a Academia Espanhola dá o seu parecer,
pelo testemunho e pelo estudo dos acadêmicos, daquelas palavras sobre as quais
o público, em geral, tem dúvida e naturalmente as emprega mal.
A nossa Academia atual, a Academia
Brasileira de Letras, já tem um Vocabulário Ortográfico pronto, um Dicionário
Onomástico, trabalha num Dicionário de Língua Portuguesa, e oxalá,
em breve, esteja trabalhando na Gramática da Academia, que é um dos
preceitos do seu Regulamento.
Algumas vezes, o escritor, pelo
prestígio de sua cultura e difusão de sua obra, passa a ser uma referência de
modelo, quase sempre sem que disso tenha alguma interferência ou consciência.
Camões, por exemplo, não pretendeu com Os Lusíadas servir de diapasão
para os escritores de seu tempo e do seu século, e dos séculos seguintes mais
próximos a ele. Mas a verdade é que a linguagem camoniana contribuiu para
uniformizar muitas formas duplas, correntes ao seu tempo, dentre as quais o
épico fez as suas escolhas, em lugar das formas que corriam e que ainda correm
em Os Lusíadas, como antre, o sufixo airo de contrairo,
a palavra piadade. Camões fixou definitivamente, para a Literatura
Portuguesa, a preposição entre, nessa forma moderna, o sufixo ario
de contrário e a palavra piedade.
Na França, Vaugelas e seus companheiros
só objetivavam o registro das formas cultas; todavia, passaram a ser
autoridades aos seus contemporâneos e aos pósteros. Tal peso de autoridade
recai muito freqüentemente nas obras lexicográficas. A Academia Espanhola
editou um prestimoso guia com o título de Dicionário de autoridades,
isso no século XVIII. Entre os escritores e a classe culta portuguesa,
exerceram extraordinário poder de sistematização da língua do século XIX e XX,
o Dicionário do fluminense Moraes Silva, a partir da 2ª edição de 1803,
e o Dicionário contemporâneo, de Aulete e Santos Valente, a partir de
1881.
Os consultórios gramaticais veiculados
pelos jornais se constituíram em paladinos da boa linguagem, às vezes, com
certos exageros e enganos. Neste particular, ressalta-se o trabalho
desenvolvido por Cândido Figueiredo, fraco em Filologia, mas que contribuiu
enormemente para o cuidado que se deve prestar à correção de linguagem. Suas
fraquezas ensejaram a que seus contraditores escrevessem excelentes
repositórios de boa doutrina, como os Fatos de linguagem de Heráclito
Graça, antigo membro desta Academia e hoje injustamente esquecido, e tantos
outros.
2 (geográfico) - O segundo critério estabelecido por Jespersen diz
respeito a uma pergunta muito freqüente entre o comum das pessoas: onde se fala
melhor o português? Onde se fala melhor o francês ou o inglês? Neste
particular, há idéias arraigadas que estão longe de corresponder à realidade,
como lembra Jespersen. Aponta-se, em geral, a capital do país, por ser
invariavelmente o centro cultural, ponto de confluência de políticos,
escritores, intelectualidade em geral e da chamada boa sociedade.
Por exemplo, no Brasil, dois Congressos
realizados, um em São Paulo, em 1937, sob o entusiasmo de Mário de Andrade, e
outro em Salvador, em 1956, recomendaram o português padrão do Rio de Janeiro
como a variedade modelar para o canto, em 1937, e o teatro, em 1956. Hoje, com
a mudança da capital para Brasília, a transferência de escritores, artistas e intelectuais
para fora do Rio, e o invisível esvaziamento cultural da antiga metrópole, não
podemos afiançar se um Congresso agora repetiria a antiga recomendação, embora
as poucas marcas regionalistas do falar carioca pareçam ainda gozar do
prestígio social de outrora e da preferência do brasileiro em geral.
A crescente presença do sotaque
paulista na televisão, quer de artistas, quer de anunciantes, pode provocar a
médio e a longo prazo mudança nesse estado de coisas, que não será acelerado,
se a nossa Academia prosseguir no valente percurso pelo qual se envereda a
Academia Brasileira de Letras. Mas, às vezes, a resposta àquelas perguntas
recai numa região longe da capital. Por exemplo, o Maranhão ou o Pará, pela
profunda presença portuguesa.
Do ponto de vista científico, diz
Jespersen, onde se fala melhor o inglês londrino é em Londres. O melhor
inglês-americano é nos Estados Unidos, como o melhor português piauiense é no
Piauí, o melhor algarvio é no Algarve, e assim por diante, simplesmente porque
a melhor e genuína variedade lingüística está na região em que ela é falada,
seja na capital, seja num modesto lugarejo, o que significa que os diversos
dialetos de uma língua histórica são igualmente válidos e igualmente corretos
em relação à tradição que aí viceja triunfante e avassaladora, e os usos que
dela, porventura, destoem são considerados errados ou estranhos pela respectiva
comunidade lingüística.
3 (literário) - O terceiro critério arrolado por Jespersen é o
literário, de cuja fragilidade já falamos, ao comentar o fator
histórico-literário de Noreen. É bem verdade que o mérito literário de um
escritor que prima em manifestar-se numa língua cuidada tem servido de modelo à
correção de linguagem. Foi até a metade deste século, o caso de Castilho, de
Herculano, de Camilo, em Portugal; e de Machado de Assis, Aloísio Castro, Rui
Barbosa, e mais recentemente, a prosa de Graciliano Ramos, de Manuel Bandeira e
de Érico Veríssimo, para não citar os acadêmicos desta Casa de Machado de
Assis.
O critério se fragiliza quando se dá o
caso de um escritor que, pela elevação de seu talento, merece um posto na
literatura do seu país, mas que não se mostrou cuidadoso na observância da
tradição culta da língua. Se o critério literário não é razão suficiente para
transformar um escritor cuidadoso do vernáculo numa autoridade suprema de
correção de linguagem, é certo que, entre alunos e iniciantes, muito contribuiu
na homogeneização e estabilidade da língua do seu tempo, como bem arremata
Jespersen.
4 (aristocrático) - O quarto critério, o aristocrático, consiste em
atribuir importância à chamada "boa sociedade", na tarefa de se
atingir a correção de linguagem. O grande obstáculo do critério é determinar
que fração da sociedade integra essa classe de falantes. No tempo em que o
prestígio residia na Corte e nos seus freqüentadores mais próximos, essa parte
da sociedade, pelas alianças matrimoniais e questões de política e de cultura,
ficava muito exposta à influência de Cortes estrangeiras. Jespersen lembra, por
exemplo, o tempo em que a Corte e a nobreza dinamarquesa recebiam forte
influência do alemão, de modo que a pronúncia e o sotaque de Holstein eram
considerados o máximo de refinamento nos ambientes aristocráticos, embora fossem
estranhos a esse idioma, e a imitação ficasse restrita a esse pequeno círculo
de pessoas.
É bem verdade que as classes ditas
inferiores tendem a imitar a fala das classes mais elevadas, social e
culturalmente consideradas; e neste convívio de influências, nota-se certo
resultado na homogeneização e estabilidade do idioma. Em sentido contrário ao
critério aristocrático, Jespersen arrola o critério democrático que, partindo
do princípio de que todos os homens são iguais, considera "correção de
linguagem" o conjunto de usos majoritariamente empregado na comunidade.
Tudo na língua depende de um consenso.
5 (democrático) - A história dos fatos lingüísticos de uma língua,
através dos tempos, tem-nos mostrado que não só existe a influência de hábitos
de falar da camada aristocrática na feição da língua comum, mas ainda, que
hábitos do falar da camada da camada popular têm exercido a mesma função de
modelo. Num livro clássico de lingüística diacrônica, Cultura e língua
francesa - História da língua literária da França desde os começos até o
presente (1ª edição alemã em 1913, 2ª edição também alemã, revista em
1929), o lingüista e filólogo alemão Karl Vossler registra que a vacilação dos
fonemas e e a (lermes/larmes, achate/achete), do "o"
fechado, "o" aberto e ou (boche/bouche, hoste/houste),
entre outros fatos, foram hábitos da fala popular que ascenderam entre os
séculos XVI e XVII, sob a força da moda, de tal maneira, que Vossler chega a
afirmar que, desde o século XVI, é muito difícil haver uma novidade vitoriosa
de pronúncia que não tenha, antes, sido proferida pela boca popular parisiense.
Não basta muita atenção para
verificarmos que esse critério democrático tem limites próximos do falar
histórico-natural apontado por Noreen e que antes comentamos, segundo o qual,
tudo na língua é igualmente correto e incorreto, na dependência exclusiva do
gosto da maioria, fazendo eco de semelhante parecer corrente entre os
estudiosos da Antigüidade, como o de Sulpício Apolinário, gramático romano
morto por volta do ano 160 d.C., professor de Aulo Gélio, ao referir-se ao omnium
pluriumve consensu, citado no excelente artigo do lingüista alemão Harald
Weinrich sobre Vaugelas e a questão do bom uso de linguagem no classicismo
francês, recolhido no livro Wege der Sprachkultur, publicado em
Stuttgart, em 1985.
Apesar da fragilidade do critério
democrático, Jespersen reconhece que ele vige ainda hoje, mascarado sob o peso
do valor do uso, em questão de linguagem, considerado a autoridade máxima para
dirimir dúvidas neste particular. Já o velho Horácio assim se pronunciava na
Ars Poetica: "Se o uso assim quiser, pois só a ele pertence a soberania, o
direito e a norma da língua".
Essa idéia, exposta por lingüistas e
gramáticos do século XIX, chega-nos por esta via, cremos, pela primeira vez,
numa citação do grande sintaticista Said Ali ao inglês Sayce, onde ele diz que:
"O uso do certo e do errado vale mais pelo dito, do que pelo veredito do
gramático, ainda que seja ilustre".
O sexto e penúltimo critério arrolado
por Jespersen é o lógico, segundo o qual a "correção de linguagem"
está intimamente relacionada, e delas depende, com as leis gerais do pensar.
Assim, a "correção" tem valor universal e deverá estar presente em
todos os homens, independentemente de nação e de língua.
6 (lógico) - O apelo à lógica é geralmente desaprovado pelos
lingüistas, muitos dos quais, como Morf, afirmam que "a língua não é
lógica nem ilógica, mas alógica". Apesar desse voto em contrário, não se
poderá pensar que a língua, veículo de conteúdos da consciência, funciona em
contradição com os princípios do pensamento, com a "lógica" entendida
em sentido muito extenso.
Lembra ainda Jespersen que, muitas
vezes, em nome da lógica ou como seu representante legítimo, alguns velhos
lingüistas tinham em mira o modelo do latim, já que, como sabemos, o idioma de
Cícero foi considerado, por muito tempo, a língua suprema por se levar, em
grande parte, o que se considerava a sua "logicidade", tal qual, nos
dias de hoje, muitos lingüistas consideram, aliás erradamente, que as
propriedades do inglês sejam válidas e onipresentes para todas as línguas,
antigas e modernas. Todos os manuais de lingüística atual se baseiam no inglês,
como se o inglês fosse um modelo para todas as línguas, como até o século XIX
era o latim para todas as línguas, até para as línguas indígenas.
A seguir, passa Jespersen ao comentário
de frases e construções gramaticais tidas por "ilógicas", como
"a mesa redonda é quadrada", "dois e dois são cinco" etc.
7 (estético) - Por fim, vem o critério artístico, segundo o qual a
"correção de linguagem" está sujeita ao nosso sentimento estético ou
à nossa sensibilidade artística, pelos quais linguagem correta vale o mesmo que
linguagem bela. Tal opinião se baseia no fato de que, se perguntarmos a alguém
o que pensa de dois modos de dizer apresentados à sua consideração, a pessoa
declara que um é melhor que o outro, ou que lhe soa mais agradável e, por isso
mesmo, mais correto.
Chegado ao final da análise dos
critérios estabelecidos, confessa Jespersen que se sente como se estivesse no
início da discussão, sem ter nas mãos critério ou critérios cientificamente
sólidos e capazes de permitir um juízo definitivo.
Oiticica - Esta deficiência dos critérios de Jespersen foi
notada por José Oiticica, uma das glórias do magistério do Colégio Pedro II,
cuja força de inteligência e de cultura está mais nos dispersos em revistas e
jornais, do que nos livros publicados para o ensino da língua portuguesa,
especialmente no Manual de análise léxica e sintática e no seu Manual
de estilo. No Curso de Literatura, escrito por volta de 1945, e
publicado em livro, postumamente, em 1960, Oiticica discute os critérios do
mestre dinamarquês, insistindo, de início, na distinção entre "língua
usual" e "língua padrão", uma vez que "não podemos aplicar
a ambas o mesmo critério de correção".
Depois de concordar com algumas
opiniões de Jespersen e discordar de muitas outras, adianta que o critério de
correção está na tradição dos mestres da língua, considerando como mestres os
escritores e os gramáticos, definindo a "correção de linguagem" como
"a equilibrada observação da tradição gramatical dos mestres da
língua".
Apesar de dar alguns passos na boa
direção, a verdade é que faltou a Oiticica a visão globalizante do problema,
visão globalizante que vai encontrar no teórico da linguagem Eugenio Coseriu, a
nosso ver, o justo tratamento das diversas facetas que a questão envolve.
Infelizmente, Coseriu ainda não deu à estampa um livro que prepara há vários
anos, intitulado O problema da correção idiomática, mas muitos dos seus
fundamentos teóricos estão na ampla bibliografia do mestre, e muitas antecipações
da questão se encontram no livro mais recente, Competência lingüística:
elementos da teoria do falar, saído em 1988 em alemão, e em 1992, em espanhol.
Tübingen - Para tomar a trilha do bom caminho, torna-se
necessário recordar alguns pontos fundamentais da teoria do lingüista de
Tübingen, o que procuraremos explicar a seguir. Compreendida a linguagem
como atividade humana universal do falar, ela realiza-se individualmente, mas
sempre dentro de acordo com as tradições das comunidades históricas, e pode
diferenciar-se em três planos relativamente autônomos: o plano universal, o
plano histórico e o plano individual.
O plano universal, ou do falar em
geral, se apresenta como prática universalizada, não historicamente
determinada, isto é, alude a todos os homens adultos e normais que falam,
independentemente de que língua falem. É o plano do falar em geral, e a ele nos
referimos quando dizemos que tal criança ainda não fala, ou que os animais não
falam. Não queremos, com estas declarações, aludir a uma língua concreta
(português, espanhol, inglês etc.), mas à capacidade de falar.
O plano histórico faz referência a uma
língua determinada, inserida numa tradição histórica, razão por que não existe
simplesmente língua, mas língua portuguesa, língua inglesa, língua latina,
língua francesa etc., isto é, a língua acompanhada de um adjetivo que a liga a
uma tradição histórica. Até as línguas inventadas (como o esperanto ou o
volapuque), ao serem construídas, passam a representar uma nova tradição
histórica do falar. Esta consciência histórica é conhecida do falante ou da
comunidade falante, que distingue a sua língua da língua dos outros, como se
referiu no início o nosso querido acadêmico Antonio Olinto.
O plano individual faz alusão ao fato
de ser sempre um indivíduo que fala uma língua determinada, e o faz, cada vez,
segundo uma circunstância determinada. A atividade de um indivíduo falar,
conforme a conveniência de uma dada circunstância, chama-se
"discurso" e diz-se que, nessa aplicação, não se deve confundir discurso
com texto, já que o texto é entendido como produto desta atividade, produto do
discurso. O discurso, tal como o texto, está determinado por quatro fatores: o
"falante", o "destinatário", o "objeto" ou tema
de que se vai falar, e a "situação".
Como toda atividade, o falar é uma
atividade que revela um saber fazer, uma competência, ainda que intuitivamente
sabido, sem possibilidade, portanto, de poder ser fundamentado, isto é, um
saber não reflexivo. Os gregos tinham para saber três palavras
diferentes: doxa, que era o saber de informação aleatória; o saber por
uma técnica aprendida, que é o téchne; e tinham o saber reflexivo, que
era o episteme.
Nenhuma língua é per si clara ou obscura, o pensamento que
através dela se comunica é que é claro, obscuro, contundente ou não.
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Saber falar - Consoante os planos aqui distinguidos na
linguagem, poderemos ter um saber falar em geral (chamado saber elocutivo ou
competência lingüística geral); um saber falar uma língua determinada, como
representante de uma comunidade lingüística com tradições comunitárias do saber
falar (chamado saber idiomático ou competência lingüística particular); e um
saber falar individual, com vista à maneira de construir textos em situações
determinadas (é o chamado saber expressivo ou competência textual).
Isso que fazemos com grande
fundamentação teórica, os gregos já faziam e os romanos também, nos primeiros
momentos da escola, onde o aluno ia aprender o trívio, isto é: a primeira
gramática, que nunca deixou de ocupar o primeiro lugar; depois, a retórica e a
dialética, sendo que a retórica e a dialética mudavam de posições no trívio.
Então, a gramática é justamente esse saber idiomático, é saber uma língua determinada.
A dialética é o saber pensar, é o saber construir o texto por meio da
linguagem, e a retórica é a organização do texto, é filtrar o texto, elaborar o
texto de acordo com a situação com que a pessoa se defrontava. Então, estes
três saberes já estavam contemplados pela antiga escola greco-romana.
O saber elocutivo ou competência
lingüística geral não corresponde a saber falar uma língua determinada
(português, inglês etc.), mas falar segundo os princípios da congruência em
relação aos padrões universais do pensamento e do conhecimento geral que o
homem tem das coisas existentes no mundo em que vive.
Lembra Coseriu que a norma de
congruência não deve ser aqui confundida com os princípios do pensamento
lógico; portanto, é uma falsa questão para o lingüista discutir se a língua é
lógica, ou ilógica, ou alógica, simplesmente porque, embora extensamente
entendidos, tais juízos não se aplicam a uma língua mas ao pensamento.
Essa confusão é comumente feita e se
patenteia, por exemplo, na célebre declaração de Rivarol, no Discours sur
l'universalité de la langue française: "Ce qui n'est pas clair
n'est pas français". Na realidade, a clareza não é da língua francesa.
Nenhuma língua é per si clara ou obscura, o pensamento que através dela
se comunica é que é claro, obscuro, contundente ou não.
Ao saber falar (em) uma língua
particular corresponde um saber histórico denominado saber idiomático ou
competência lingüística particular, que é falar uma língua de acordo com a
tradição lingüística historicamente determinada de uma comunidade. A dimensão
desse saber idiomático não se restringe aos atos lingüísticos de um momento
determinado (a dimensão sincrônica), mas alcança os atos não mais usados nesse
momento (que é a dimensão diacrônica), o que permite que o falante possa
afirmar coisas do tipo: "Isso não se diz mais", ou "Hoje
preferimos dizer de outra maneira", ou "Isso pertence à linguagem
antiga", ou ainda, "Só os idosos dizem assim", o que patenteia
que o falante conhece na sua língua mais de uma sincronia.
Afora essa dimensão no tempo, esse
saber idiomático identifica variedades que ocorrem numa língua histórica, isto
é: variedades regionais, que são os dialetos; variedades sociais, que são os
estratos sociais falados pelos diversos integrantes de uma sociedade; e o falar
regional, vale dizer, se um ato lingüístico (palavra, expressão ou frase) é
típico de uma região (por exemplo, o que no Brasil é trem, em Portugal é
comboio; o que em Portugal se opta por estar a almoçar, no Brasil
preferimos estar almoçando; o que no Rio de Janeiro se chama sinal
luminoso de trânsito, em São Paulo é farol, mais para o Sul, semáforo,
e em Porto Alegre, sinaleira).
Ao saber expressivo ou competência
textual corresponde o saber estruturar textos, em consonância ou com atenção
aos fatores gerais do falar, isto é, o falante, o destinatário, o objeto e a
situação, já que há formas que dizem respeito a esses fatores. Assim, por
exemplo, há de se levar em conta como falar com os superiores hierárquicos, com
os mais velhos, com as senhoras, com as pessoas de pouca instrução, com as
crianças. Às vezes, há normas rígidas, ou quase rígidas, na estruturação formal
de um texto, como, por exemplo, se se trata de um soneto ou poema, há de ter
uma forma fixa de quatorze versos; de um ofício, de um requerimento, de um
telegrama, ou de uma dissertação acadêmica.
Há também formas lingüísticas
tradicionalmente fixas. Para a saudação matutina, dizemos, em português, Bom
dia! ou Bons dias!, ainda que a saudação aconteça num dia de chuva
ou de cara feia, como o de hoje. Às vezes, as línguas utilizam modos
tradicionais muito diferentes entre si. A apresentação inicial de pessoas, que
se conhecem pela primeira vez, por exemplo, se faz entre nós com Satisfação!,
enquanto o francês prefere Enchanté!, o italiano Piacere!, e o
espanhol Mucho gusto!
Juízo de valor - Esses saberes, pelos seus desempenhos por parte
dos falantes, estão sujeitos a juízos de valores, em relação aos três planos
aqui distinguidos. Quando o saber se manifesta na atividade do fazer, no saber
fazer, recebia entre os gregos o nome de téchnè, assim um título como téchnè
grammatiké denunciava um saber de como se faz algo. Os latinos
traduziram o termo grego por ars, que, como judiciosamente ensina
Coseriu, não significava o que hoje chamamos "arte" (alemão Kunst),
mas tinha o significado, que também existia no antigo alemão, de uma capacidade
que se evidenciava, que se manifestava, que se mostrava no fazer; assim sendo,
não têm fundamento as discussões entre lingüistas tradicionais e modernos sobre
se a gramática é uma arte ou uma ciência, com base nos conceitos que, de fato,
designavam tais termos.
O juízo de valor que faz referência ao
nível do saber elocutivo ou competência lingüística geral recebe o nome técnico
de "congruência", que faz alusão ao fato de alguém falar, em cada
caso, de acordo com as habituais expectativas normais. A um falar que, neste
plano, não corresponde às normas de clareza, coerência e congruência, se diz
"incongruente".
Desta maneira, as propriedades de
clareza, coerência, inteligibilidade e congruência atribuídas a uma língua, na
determinação do que vem a ser correção de linguagem, não estão adequadas ao
plano da língua, porque erram no seu objeto: não é, como vimos, a língua que
deve ser "clara", "coerente" e "congruente", mas
sim, a atividade no nível do falar em geral, a regra e o compasso do falar
"com sentido".
O juízo de congruência é autônomo ou
independente dos juízos que se referem à língua particular e ao texto, porque o
falante conhece o descompromisso da metáfora, o desfazimento da metáfora. De
modo que quando alguém diz, como na nossa letra de música "Tudo vai bem
entre nós, como dois e dois são cinco", a pessoa quis, absurdamente, dizer
isso, e o falante conhece a maneira de decodificar esta metáfora e entende
claramente o que o compositor quis dizer quando disse: "Tudo está certo
entre nós, como dois e dois são cinco". Consoante cada fator envolvido no
discurso ou no texto, temos distinções para fazer: primeiro, em atenção ao
objeto ou tema, pode o saber expressivo ser adequado ou inadequado; em atenção
ao destinatário, pode ser apropriado ou inapropriado; em atenção à situação ou
circunstâncias, pode ser oportuno ou inoportuno.
"Nenhum modo de falar é correto em si mesmo.
(...) nenhum modo de falar é por si mesmo exemplar." |
Correto? - Nenhum modo de falar é correto em si mesmo. É
correto porque existe, historicamente. Da mesma maneira, nenhum modo de falar é
por si mesmo exemplar. É exemplar porque foi eleito, ou por tácita adoção dos
falantes, ou pela ação de gramáticos ou academias empenhados na política do
idioma e na homogeneidade idiomática. Elege-se a exemplaridade ou o modo
exemplar, em nossas comunidades, como o modo de falar das pessoas cultas, por
representar o nível mais alto da língua comum. Como a língua comum apresenta ou
pode apresentar variedades, a língua exemplar pode desenvolver normas
regionais, especialmente nas línguas faladas em vários países. Assim, temos uma
norma exemplar para Portugal e outra para o Brasil; entre brasileiros, podemos
contar, por exemplo, com uma norma do Rio de Janeiro e outra de São Paulo.
A língua literária é o registro
(conjunto de estilos) mais elevado da língua exemplar.
Conclusões - Pelo exposto, pode-se concluir que os chamados
tradicionalmente "critérios de correção", na realidade, são tipos de
exemplaridade. E disto advêm duas conclusões importantes: tais critérios não
são nem critérios, nem de correção. Não são critérios, porque, em se tratando
de exemplaridade, não são o fundamento da eleição de um modo entre as várias
possibilidades. Nem tampouco são de correção, porque, ainda se tratando de
exemplaridade, não têm por objeto estabelecer se um modo está correto em
qualquer falar de uma comunidade.
Outro engano de conseqüências graves é
reconhecer a língua exemplar como a única correta e, portanto, em qualquer
circunstância, só segundo seu modelo se deve falar uma língua. Cada comunidade
lingüística, como vimos, tem uma unidade mais ou menos idealmente homogênea, de
modo que encerra mais de uma tradição.
A pauta do correto, a tradição
lingüística, se concretiza no uso, razão por que tem sido o uso um critério
muito evocado, da Antigüidade aos nossos dias. Só que o uso, entendido como o
comprovado no falar, se estende além do idiomático, e se manifesta ainda no
saber elocucional e no saber expressivo; por outro lado, o uso, entendido como
comprovação de certo modo de falar, não é o fundamento da correção, mas sua
justificação ulterior.
Outro aspecto digno de atenção é que o
uso, referindo-se apenas ao uso idiomático, não só abrange o "já
dito", mas a realização de novos usos, em conformidade com a pauta do
"saber fazer". Por isso, este termo "uso" deve ser
substituído por "saber idiomático".
"...um poliglota dentro da sua própria língua..."
|
Norma culta - E agora, para terminar, retomemos o nosso tema
inicial que é o saber, a norma culta na democratização do ensino. O que vem a
ser isso? Vem a ser o seguinte. O professor deve convencer-se de que uma língua
histórica (português, francês, espanhol), não é uma realidade homogênea e
unitária; ela está dividida em várias línguas, de acordo com as variedades
regionais, as variedades sociais e as variedades estilísticas.
Cada variedade dessas tem uma tradição
lingüística e essa tradição é um modo correto, é uma maneira de correção da
linguagem. Agora, todas essas variedades lingüísticas confluem na língua
exemplar, que é a língua de cultura. Então, a língua exemplar não é nem
correta, nem incorreta, porque correto na língua é o que está de acordo com uma
tradição. Se existe, por exemplo, uma tradição coloquial que diz "chegar
em casa", esse é o padrão de correção na língua exemplar. Agora, o
"chegar à casa" já é uma eleição cultural, que é exclusiva da língua
exemplar.
De modo que quando os consultórios
gramaticais dos nossos jornais falam: isto está certo, isto está errado - na
realidade, não é isso. Cada modo de dizer tem o seu padrão de correção;
entretanto, todos esses padrões convergem, por eleição, a uma forma exemplar.
Essa forma exemplar é a forma que está na língua literária, quando o escritor
sabe trabalhá-la artística, cultural e idiomaticamente.
Então, o que acontece? A democratização
do ensino consiste em que o professor não acastele o seu aluno na língua culta,
pensando que só a língua culta é a maneira que ele tem para se expressar; nem
tampouco aquele professor populista que acha que a língua deve ser livre, e
portanto, o aluno deve falar a língua gostosa e saborosa do povo, como dizia
Manuel Bandeira. Não, o professor deve fazer com que o aluno aprenda o maior
número de usos possíveis, e que o aluno saiba escolher e saiba eleger as formas
exemplares para os momentos de maior necessidade, em que ele tenha que se
expressar com responsabilidade cultural, política, social, artística etc.
E isso fazendo, o professor transforma
o aluno num poliglota dentro da sua própria língua. Como, de manhã, a pessoa
abre o seu guarda-roupa para escolher a roupa adequada aos momentos sociais que
ela vai enfrentar durante o dia, assim também, deve existir, na educação
lingüística, um guarda-roupa lingüístico, em que o aluno saiba escolher as
modalidades adequadas a falar com gíria, a falar popularmente, a saber entender
um colega que veio do Norte ou que veio do Sul, com os seus falares locais, e
que saiba também, nos momentos solenes, usar essa língua exemplar, que é o
patrimônio da nossa cultura e que é o grande baluarte que esta Academia
defende.
(*) O professor e filólogo Evanildo
Bechara proferiu esta conferência em 4/7/2000 na Academia Brasileira de Letras,
dentro do ciclo de conferências "A Língua Portuguesa em Debate". O
palestrante foi assim apresentado pelo acadêmico Antonio Olinto:
"Meus amigos, estamos hoje
diante de um homem que, de fato, entende a língua portuguesa. Tenho falado
tanto em Laudelino Freire, ultimamente, e ele dizia que cada língua tem a sua
índole, e nós, só de fato, denominamo-la, e de fato, passamos a gostar dela,
quando entendemos essa índole, quando entendemos o ritmo. Não sei se já
repararam que, quando aprendemos francês ou inglês, eles não gostam, porque não
temos ainda, no começo, o ritmo da língua deles. E vemos também que os
estrangeiros que aqui chegam levam muito tempo para pegar o ritmo da nossa
língua.
"Se há um homem que, no Brasil,
compreende este ritmo, é Evanildo Bechara. Mas não só isto, porque ele é
lexicólogo, gramático, professor emérito, no sentido autêntico da palavra, não
só no sentido oficial, e escreveu uma moderna gramática portuguesa, que é a
melhor que tivemos, não digo nos últimos quinhentos anos, mas nos últimos
cinqüenta. Do meu tempo de estudar a língua, de que eu viria mais tarde a ser
escravo, que é a língua portuguesa, me lembro de todas aquelas gramáticas das
décadas de 20 e 30, e o entusiasmo com que mergulhava nelas.
"Apesar de ter chegado a esta
vetusta idade, mergulho na gramática de Evanildo Bechara, sabendo que ali vou
encontrar o fluxo normal, o ritmo, a beleza e as explicações precisas e claras
sobre aquela língua que é a minha, que fez o meu país, e que faz o nosso país,
neste tempo.
"Está ele aqui hoje para nos
transmitir um pouco da sua sabedoria neste setor fundamental para a nossa vida
pessoal e nacional, que é o conhecimento perfeito e alegre da língua
portuguesa."
No final da palestra, lembrado pelos
participantes do encontro de que "a obra Os Lusíadas de Camões era
considerada a língua mater de Portugal" e questionado - "A
nossa língua portuguesa é considerada, em Os Sertões de Euclides da
Cunha, como nossa língua principal, a mais importante?" -, Evanildo
Bechara respondeu:
"A nossa língua mater é,
incontestavelmente, a portuguesa. Aquela realizada por Camões no século XVI,
realizada por Euclides da Cunha e Machado de Assis, e por todos os bons
escritores que, graças a Deus, vivem espalhados por todo o Brasil e por todo o
Portugal. De modo que uma língua não se concentra num autor só. O próprio
Camões é um poliglota. Conhecemos Camões, por exemplo, geralmente dos Lusíadas,
mas há um Camões épico, há um Camões lírico e há um Camões teatrólogo.
"O Camões teatrologo é tão gil-vicentino, como Gil Vicente. Lendo
Camões, lendo as peças teatrais de Camões, El-rei Seleuco, Anfitriões,
Filodemo, estamos praticamente diante de uma língua especial do teatro, do
chamado teatro popular, que é o teatro vicentino. Assim como, na Grécia, os
diversos gêneros tinham dialetos diferentes - o épico, por exemplo, era o
dialeto homérico, o lírico era o ático etc. -, assim também Camões, quando faz
teatro, faz teatro na grande língua saiaguês de Gil Vicente. Então, para
responder à sua pergunta, todo falante culto é um clássico na sua língua, seja
ele escritor, seja ele médico, seja ele advogado, desde que utilize a língua
nesses três níveis: no seu saber elocutivo, no seu saber idiomático e no seu
saber expressivo."