26 de fev. de 2006

Mais federais e docentes, menos alunos

Paulo Renato Souza, O Estado de S. Paulo (26/02/06)

O presidente Lula anunciou na última semana que o governo investirá quase R$ 600 milhões na construção de 40 novos campi de universidades federais, sendo seis em novas instituições. Sem dúvida, trata-se de iniciativa louvável. Entretanto é preciso levar em consideração que na educação, como nas demais áreas sociais, o custo maior não é o investimento de instalação, mas a manutenção ao longo dos anos, e nenhuma palavra foi dita a este respeito. Não deixa de ser curioso que ele faça esse anúncio no último ano de seu governo, deixando a conta para ser paga pelos próximos, sendo seu apenas o bônus de um anúncio que soa eleitoreiro. O mais grave, porém, é que, ao mesmo tempo que anuncia novas instituições, seu governo deixa de cuidar da expansão das matrículas nas universidades federais existentes, num total desrespeito ao povo que as mantém com o dinheiro dos impostos.

No final do ano passado, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação, divulgou os dados do Censo do Ensino Superior referentes ao ano de 2004. Os dados do censo são recolhidos nos primeiros meses de cada ano e refletem, portanto, o resultado das medidas e políticas adotadas no ano anterior. Assim, os números de 2003 refletem as políticas adotadas até o final de 2002 (último ano do governo FHC) e os de 2004, as medidas adotadas em 2003, ou seja, o primeiro ano do governo do PT. Dessa forma, o período correto para avaliar as políticas do governo anterior em relação às universidades federais é o compreendido pelos censos de 1995 a 2003.

No governo FHC, a matrícula nas universidades federais passou de 353 mil para 567 mil alunos, o que corresponde a uma expansão total de 61% ou de 6,1% por ano, em média, durante os 8 anos. No primeiro ano do governo Lula, a matrícula total cresceu apenas 1,2%. O mais grave e sintomático foi o que ocorreu com as matrículas nos cursos noturnos: em 1995 eram menos de 70 mil, passando a 145 mil em 2003, numa expansão total de 110% no período. Para que se tenha uma idéia, apenas no último ano do governo FHC conseguimos elevar em mais de 13 mil o número de alunos em cursos noturnos. Pasmem os leitores: o número de alunos noturnos nas instituições federais de ensino superior diminuiu, em termos absolutos, em cerca de 400 alunos no primeiro ano do governo Lula! Não é preciso lembrar que os universitários que estudam à noite são, em geral, os mais carentes, porque necessitam trabalhar durante o dia. Olhando objetivamente, para eles o governo Lula reduziu as oportunidades de estudar numa universidade pública.

Em contrapartida, o número de professores continuou a crescer significativamente. O censo de 2004 registra 2.333 professores ativos a mais do que em 2003. Durante o período do governo FHC, o número de professores também cresceu, porém numa proporção menor do que a expansão dos alunos. Como conseqüência, a relação aluno/professor nas federais subiu de 8,2 para 10,9 no período. No primeiro ano do governo Lula, essa relação, pela primeira vez desde 1995, diminuiu para 10,5 alunos por professor. Para que se tenha uma idéia comparativa, nas melhores universidades americanas essa relação é de, no mínimo, 16. Em outras palavras, poderíamos ter mais alunos nas federais com o mesmo número de professores, melhorando a eficiência no uso de recursos públicos. Em vez de continuar o caminho nessa direção que nosso país vinha trilhando, o atual governo permitiu o retrocesso.

Durante o governo FHC, autorizamos a realização de mais de 11 mil concursos públicos para docentes nas federais. O presidente Lula afirma que contratou cerca de 9 mil professores. A diferença é que no período anterior, com a expansão, conseguimos elevar o nível médio de qualificação dos docentes, o que não ocorreu no primeiro ano do governo atual. Pela primeira vez nos últimos 5 anos, piorou a qualificação média dos docentes das universidades federais: a proporção de professores com a titulação de mestrado ou doutorado diminuiu de 72% para 71% entre 2003 e 2004. Em 1995 tínhamos apenas 63% nessa condição.

O que explica comportamentos tão díspares de um governo para outro? No meu entender, são basicamente três políticas que foram alteradas ou abandonadas. Em primeiro lugar, a remuneração dos docentes estava parcialmente baseada no seu desempenho, avaliado segundo critérios fixados por cada universidade. Em muitos casos, por exemplo, dar aulas à noite contava pontos. Essa prática foi abandonada e a gratificação passou a ser igual para todos. Em segundo, a distribuição de recursos de custeio para as universidades estava baseada numa matriz de desempenho na qual tinha peso elevado o número de alunos e os cursos noturnos. Essa matriz também foi abandonada. Finalmente, exigíamos que os concursos fossem abertos apenas para professores-doutores. Essa norma foi relaxada recentemente, sob a alegação de que não havia doutores interessados nos cargos em algumas universidades federais mais distantes.

Na justificativa para a abortada reforma universitária, o anterior ministro da Educação deste governo afirmava sua política de elevar a participação da matrícula pública sobre o total de alunos do ensino superior. A julgar pelas evidências empíricas produzidas pelo próprio MEC, o atual governo caminha na direção oposta à intenção do ex-ministro, aumentando ainda mais o que eles chamaram na campanha presidencial de "privatização do ensino superior" (sic).

Paulo Renato Souza, economista, foi ministro da Educação no governo FHC, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e secretário de Educação do Estado de São Paulo no governo Montoro. E-mail: paulo.renato@isd.org.br

Reproduzido do e-agora

O drama humano do emprego sem futuro

José de Souza Martins, caderno Aliás, O Estado de S. Paulo (26/02/06)

Os nossos janeiros e fevereiros são sempre anunciadores de taxas maiores de desemprego. Mas somos logo acalmados pelas análises que nos dizem que é assim mesmo. Há maior desemprego agora porque os excepcionalmente contratados em dezembro, devido ao movimento comercial maior do período natalino, estão sendo demitidos. Portanto, não nos alarmemos: estamos voltando à normalidade da anomalia do desemprego duradouro.

Analisar o desemprego é complicado. Os artifícios conceituais ajudam a pôr um pouco de ordem no entendimento que se tem do que para o desempregado é um drama, é muito mais do que um jogo de recursos explicativos. Sejamos otimistas, porém: o desemprego deste janeiro é melhor do que o desemprego de janeiro de 2005: caiu de 10,2% para 9,2%.

O desemprego, pelos níveis crescentes de sua duração, deixa de ser uma situação ocasional, rara e transitória e passa a ser uma situação duradoura e reiterada. Dados do Dieese mostram que em São Paulo o tempo médio de procura de emprego, em relação aos dois sexos, passou de 8 meses, em 1998, para 13 meses, em 2004, e assim se manteve ao longo de 2005. De modo geral, é esse o cenário em várias regiões do Brasil. O desemprego atual é expressão de uma ocupação rotativa dos trabalhadores, que acaba atenuando a sua capacidade de reivindicação social, especialmente salarial. Hoje o desemprego cíclico é parte da biografia prospectiva do trabalhador, desde o seu primeiro emprego. Ele se emprega já como candidato ao desemprego. Com o passar dos anos, a reinserção no trabalho vai ficando mais demorada, até o completo desalento.

No grupo de referência mais importante de cada um, que é a família, a maior probabilidade é a de que haverá nela permanentemente ao menos um desempregado. Os trabalhadores já estão mergulhados num universo de revigoramento de mecanismos de dependência material que afeta a organização da família, afeta autonomias pessoais e projetos de vida, distanciando as pessoas dos valores de classe média da sociedade de consumo sem propor alternativas. Não só o trabalhador que perde seu emprego é afetado e não só a sua família é alcançada pelos efeitos do desemprego. São afetados também os marcos de referência da inserção social e da ascensão social que dominavam o imaginário popular.

O desemprego desencadeia um refluxo nesse imaginário, uma redução nas expectativas sociais e econômicas, uma inversão da biografia imaginária do homem comum em relação ao que era essa biografia nos tempos do desenvolvimento industrial mais intenso e das intensas migrações em direção às grandes cidades, especialmente São Paulo e sua área metropolitana. Pode-se dizer que há uma sociabilidade do trabalho, gestada pelo trabalho. Esta é uma sociedade marcada pela valorização social do trabalho. Integrado é quem se orienta por ela, o que dá bem a medida do drama do desempregado e da angústia de quem vive na perspectiva de perder o emprego.

Boa parte da crise social e pessoal que resulta do desemprego decorre do fato de que o trabalho no mundo contemporâneo foi separado da casa: o lugar de viver é diferente do lugar de trabalhar. Criou-se um mundo social que depende do emprego para se reproduzir, criar identidades, definir referências. O desemprego restitui o desempregado ao predomínio da vida familiar e da casa, às relações de dependência que lhe são próprias. Mas, um mundo familiar que já não dispõe da autonomia econômica que fundava um modo de produzir próprio do âmbito doméstico. Um mundo familiar que está agora mutilado pela dependência em relação a uma fonte de sustentação e de regeneração econômica incerta e descontínua. O desemprego o restitui, portanto, a um mundo que é o da vida e do trabalho domésticos, um mundo que, em decorrência da expulsão do trabalho para fora da casa, se tornou feminino. Nesse sentido, o desemprego lança o homem desempregado num universo que ele próprio ajudou a estigmatizar e que agora o estigmatiza.

Dramas imensos e até tragédias volta e meia são noticiados pelos jornais envolvendo essas situações. A mulher que foi socializada para o trabalho e para a independência pessoal que dele decorre, no desemprego sofre dramas semelhantes, que se diferenciam quando muito pelo enredo. Seria até cruel supor que o problema se resolveria com uma educação que tornasse aceitável essa dialética do retorno cíclico ao mundo doméstico como um fato natural da modernidade.

O cenário pode estar se complicando nesta sociedade de valorações rígidas, se levarmos em conta que a entrada no mercado de trabalho vem sendo retardada tanto pela exigência de maior qualificação quanto pelo encolhimento geral das oportunidades de trabalho. O jovem corre o sério risco de entrar no rol dos preguiçosos e indolentes, sobretudo pela dependência material além da idade que a história passada fixou para isso. Concepções semelhantes cercam quem perde o emprego e demora para encontrar outro. O desempregado, sobretudo o homem, entra facilmente no universo das avaliações negativas, tratado como quem vive à custa de outrem, pior ainda se à custa da mulher.

Essas valorações mediatizam o conjunto das relações sociais e regulam, portanto, a própria construção dos relacionamentos, a admissão em certos ambientes e grupos, a circulação social, as possibilidades de integração e participação nas relações cotidianas. Há uma certa morte social no desemprego.

A mera ocupação substitutiva do emprego, como as do ciclo natalino e de outros ciclos de euforia econômica, pode se expressar na consciência do trabalhador nessa condição, que ele é quem faz apenas o supérfluo, irrelevante e desqualificado, no limiar da condição de descartável. Os trabalhadores rurais e urbanos falam muito em assegurar o “futuro para os filhos”, que não ter profissão não dá futuro, que tal trabalho não tem futuro. Portanto, só é legitimamente emprego o trabalho que, além de assegurar o presente, assegure o futuro e assegure o futuro da família e não de uma só pessoa.

José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo

Reproduzido do e-agora