17 de nov. de 2005

Seu Jorge ofende a Central Única das Vítimas

Por Reinaldo Azevedo - Primeira Leitura de 15/11/2005

Deu-se, na segunda-feira, uma das melhores entrevistas do Roda Viva desde que o programa existe. Se não perco a conta, foi o 1001, o que é um bom augúrio para os próximos mil. Nesse sentido, Lula, o número 1000, na semana passada, foi um bom desfecho para tudo o que se foi, para o passado, para o Brasil que está, felizmente, morrendo. Lula é a nossa tragédia pregressa. Seu Jorge, cantor, ator, músico, compositor, performer, ex-morador de rua, é a estrela do início do novo milênio. Quem não viu tem de comprar o DVD. Seu Jorge me deu até alguma esperança. E olhem que isso não é assim tão fácil. E também reiterou uma certeza: o establishment intelectual brasileiro é só um cadáver à espera das exéquias. Está atravessado no meio da sala da consciência nacional.
Ele canta bem, compõe algumas músicas agradáveis na mistura de gêneros populares que abraçou e é bastante articulado. Como toda pessoa de talento, cultiva o velho e bom individualismo — não este que os cretinos vivem satanizando por aí; refiro-me a outro. Ele sabe que será melhor ou pior, bem ou malsucedido, a depender de seu esforço pessoal, de suas escolhas, de seu brilho. Paulo Markun, mediador e também diretor do programa, deixou claro que ele era o convidado, entre outros motivos, por causa do Dia da Consciência Negra, que se comemora no próximo dia 20 — Zumbi dos Palmares foi morto num 20 de novembro. Ocorre que Seu Jorge vale a pena ainda que fosse verde, tivesse só um olho no meio da testa e mexesse as antenas quando canta.
Entrevistaram-no Maria Amélia Rocha Lopes, jornalista e crítica musical; José Vicente, presidente da ONG Afrobras; Lázaro de Oliveira, da TV Cultura; Pedro Alexandre Sanches, da Carta Capital; Deise Benedito, do Fórum Nacional de Mulheres Negras; o historiador e professor Joel Rufino dos Santos, da UFRJ, e Luciano Ramos, crítico de cinema da Rádio Cultura. Pelo menos José Vicente, Deise Benedito e Joel Rufino tinham uma clara identificação com a causa dos negros, o que ficou evidente ao longo da entrevista. O convidado deu um show.
Seu Jorge não quer ser mais escravo. A escravidão saiu de dentro dele. Ele não quer ser mais escravo porque é negro. Ele não quer ser mais escravo porque foi pobre. Ele não quer ser mais escravo porque é brasileiro. Ele não quer ser mais escravo porque é do Terceiro Mundo. Seu Jorge é senhor absoluto de sua vida: é senhor porque seus ancestrais foram escravos; é senhor porque é negro; é senhor porque foi pobre; é senhor porque é brasileiro. É senhor porque é do Terceiro Mundo. É senhor porque quer.
Escrava, com todo respeito, de uma velha escola se revelou a maioria dos entrevistadores, isto sim, fossem brancos ou negros, militantes ou jornalistas. Pouco escapou. Um, branco, queria que Seu Jorge contasse como foi discriminado em Londres “porque era negro”. Os advogados putativos dos “perseguidos” têm sede de uma causa. Só que o homem não quis ser vítima, não. Contou que foi ele a esnobar os ingleses. Quanto voltou ao país, deixou claro, exigiu tratamento dispensado às idiossincrasias de um João Gilberto. Ele não berra. Ele canta. Ele não distribui panfletos. Ele pensa. Um outro, intelectual negro, porta-voz de uma causa, queria arrancar de Seu Jorge a declaração da supremacia da cultura negra, tão discriminada. E o cantor, nada! Para ele, tudo vale. Não tem essa de superioridade. O rochedo fica, poetizou. A onda bate nele, morre na praia, não dura.
Seu Jorge mora em São Paulo — “Túmulo do samba?”, alguém perguntou ao cantor fluminense. Que nada! Ele adora São Paulo. O samba não é o Rio. O Rio não é a Zona Sul. Seu Jorge fez blague com aquela gente tostadinha e progressista “que aplaude o pôr-do-sol”. Ah, o insofismável brilho do talento. Queriam porque queriam que ele se sentisse discriminado. E ele dizia: “Mas eu não sou”. Queriam porque queriam que ele exercesse o doce charme do vitimismo. E ele cada vez mais dono de si mesmo. Queriam porque queriam que ele carregasse uma bandeira. E ele fazia a apologia do esforço pessoal, do talento pessoal, da dedicação pessoal. “Mas, então, basta cantar?”, perguntou um outro já à beira do desespero. Não, tem de ter algo mais. Ele diz que educa os filhos de outro jeito. Quer que estudem, que se esforcem.
Seu Jorge falou até sobre a França, onde faz muito sucesso. Parece não aprovar — só jornalista branco e ocidental é que aprova — as maluquices da intifada européia. O homem lembrou que os franceses dão benefícios sociais aos imigrantes e que acham injusto aquilo tudo acontecendo. Ora, por que não? Seu Jorge morou na rua entre 1990 e 1997. Faz oito anos que decidiu ser o que queria ser quando já não queria mais ser morador de rua. Não teve a má sorte de cair nas teias de proteção de um padre Júlio Lancellotti. Ou se tornaria morador de rua profissional. Cantando nos protestos, debaixo dos viadutos e pontes, onde, escreveu um articulista, Anatole France teria dito (não disse) que os pobres têm o direito de morar. Seu Jorge mora em qualquer lugar.
Seu Jorge é adoravelmente arrogante. Tem a arrogância dos que se prezam. Markun, quando flagrado, estava visivelmente feliz. Sabia que o programa que conduz e dirige estava marcando um golaço. Mas havia olhos aflitos naquela roda-viva. Meus Deus! O que faremos com todas as piedades que trouxemos aqui? Onde vamos pôr toda a nossa revolta apreendida nos manuais submarxistas de formação da etnia brasileira? Mais um pouco, e corria o risco de alguém disparar: “Quem esse preto pensa que é para ficar dispensando o nosso carinho protetor, esnobando a nossa embevecida admiração? Ele era a nossa melhor chance de uma vítima triunfante. E, no entanto, comporta-se assim...”. Seu Jorge disse que Vinicius de Moraes falou besteira ao classificar São Paulo de túmulo do samba.
Gente boa não baixa a cabeça. Nem diante dos piedosos, que é quase sempre uma forma sublimada de arrogância. Ter chamado Seu Jorge como homenagem à Semana da Consciência Negra foi um grande acerto. Mas foi se revelando, como direi?, também um erro. Ele é, isto sim, um bom e quase irritante brasileiro, também negro. Boa parte dos presentes queria falar sobre o tal “racismo cordial”, e o homem citava, sem querer, Eleanor Roosevelt: “Ninguém me ofende a menos que eu queira”. Aí, o representante da ONG falou de um evento que vai reunir personalidades negras. Queria saber o que ele achava. Ele achava legal, claro, claro... Mas Seu Jorge é muito mais do que negro, é muito mais do que branco, é muito mais do que toda aquela patota que estava a fim de tirar uma casquinha do seu talento, encaixando algum proselitismo no ar, para fazê-lo também veículo de uma causa. Seu Jorge não é cavalo dos maus espíritos de teorias capengas.
Seu Jorge não bota fogo em carros. Seu Jorge não bota fogo em prédios. Seu Jorge não tem pena de si mesmo. Seu Jorge canta. Seu Jorge compõe. Seu Jorge adora se saber bom e fazer sucesso. Seu Jorge não tem a menor disposição para o sofrimento e dispensa os enfermeiros de seu ego. Seu Jorge é brilhantemente vaidoso. Quando Seu Jorge fala sobre os que falam sobre Seu Jorge, Seu Jorge só conta os elogios que fazem a Seu Jorge. Seu Jorge é, definitivamente, um homem superior.
Músicas etc. e tal
Eu o ouvi pela primeira vez não faz tanto tempo. É uma das poucas concessões que faço à chamada música popular brasileira. Não que me considere um especialista em qualquer outra. Não gosto tanto assim de música. Gostar mesmo, eu só gosto de palavras. Mas eu passei a ouvi-lo. Aprecio a sua voz como apreciava a de Cássia Eller. Há em ambos uma afinação única, meio desengonçada, meio gauche, que me agrada muito. Incomoda-me gente que canta “certinho”, que sussurra afinações. Cantores da Bossa Nova sempre me irritaram um tantinho. Eu preferia, por exemplo, Tom Jobim já na fase do fôlego curtíssimo. Porque a música era uma maravilha, e a voz lhe saía errado. Ouvi Seu Jorge e gostei. Esperava um gancho para falar sobre ele.
Decidi ver a entrevista e estava um pouco apreensivo. Artistas falam muita besteira. A maioria deveria ficar de boca fechada. Dia desses, na TV, em ensaios (chamam-se “pilotos” em linguagem técnica) de um programa jornalístico diário de que vou participar, comentei, um pouco a sério, um pouco por blague, que cantores deveriam só cantar, jamais pensar. Eu me referia à participação de Alceu Valença, outro bom da MPB, num protesto idiota contra Bush. “Idiota” não porque Bush não possa ser alvo de protestos (não estou debatendo isso aqui, não agora), mas porque o cantor pernambucano, na manifestação, era de uma irrelevância danada. A música que ele fez para Copacabana é que é a sua praia. No mesmo parágrafo, afirmei que outros, como Fagner, poderiam parar de cantar e só dar entrevistas.
Meus colegas protestaram docemente. Acharam o comentário preconceituoso, agressivo talvez. Todo homem tem direito de ter preconceitos. Quem não tem preconceitos é gaveta ou é idiota. O bom dos meus é que são irrelevantes. O Fagner não vai deixar de cantar só porque eu o aconselhei a tanto. O Alceu não vai deixar de fazer besteira política só porque eu sugeri. O máximo que posso ganhar é a antipatia dos fãs de ambos. Preconceito em que o único prejudicado sou eu é, então, problema exclusivamente meu. Penso em criar um movimento de combate ao preconceito dos que não aceitam os meus preconceitos.
Retomando o fio. Eu estava algo apreensivo porque temi que ele fosse macaquear um discurso que, sabidamente, não é o seu. Receava que fosse engolido pela voz média do consenso oficial: haveria um terrível preconceito racial no Brasil, tanto pior porque velado. É o que todo militante negro acha. É o que todo branco de esquerda acha porque não pode ver uma causa passar ao lado sem engrossar o cordão dos puxa-sacos de qualquer vítima de plantão. Mas que nada! Seu Jorge está entre aqueles poucos que devem tanto cantar como falar. Não se permitiu ser capturado por todas as redes de boa consciência que lhe foram lançadas. Seguiu adiante: talentoso, na dele, preocupado apenas em fazer cada vez melhor aquilo que sabe fazer.
Há três anos
E ainda me senti entre homenageado e vingado. Há três anos, protagonizei, no mesmo Roda Viva, também por ocasião da Semana da Consciência Negra, um debate bem azedo com um acadêmico. Começamos nos desentendendo sobre cotas raciais e terminamos nos estranhando sobre tudo o mais, inclusive a qualidade do livro que ele havia escrito e que servia de referência àquele encontro. Por uns bons meses, o programa foi um estigma na minha vida. Chegavam-me xingamentos de todos os lados. Porque me opus (e me oponho) a cotas, chamaram-me “racista”, “direita”, “fascista” e outras delicadezas.
Não vou requentar aquele debate porque os números, hoje ainda mais do que antes, me dão razão absoluta. Três anos depois, o negro Seu Jorge, com alma de negro, cabelo de negro, história de negro, diz àqueles olhos que começaram caridosos e solidários e terminaram espantados, sem ter onde pôr seu estoque de piedades e vocação militante: “Protejam-me do seu amor, protejam-me dos seus cuidados, protejam-me de suas causas, protejam-me de seus carinhos”.
Seu Jorge provou que o establishment politicamente correto agoniza. Sua entrevista não torna melhor a sua música. Mas eu o ouvirei ainda com mais prazer. Sua competência ofende a Central Única das Vítimas. Longa vida a seu Jorge!

11 de nov. de 2005

CORSÁRIOS, VISIONÁRIOS E PETISTAS

por Glauco Fonseca - publicado no Diego Casagrande

Os dois filhos de Francisco são amigos do mais ilustre filho de Aristides. Zezé Di Camargo e Luciano são amigos de Lula, o presidente do Brasil. Nunca passou pela cabeça dos filhos de Francisco, entretanto, que o filho de Aristides, presidente do Brasil, voando alto e sempre num majestoso e novíssimo Airbus, estaria assistindo a seu filme, que inclusive concorrerá ao Oscar... em cópia pirata!

Isso mesmo, senhoras e senhores, filhos de Francisco, sobrinhos de José, netos e netas do inesquecível Badanha: No “Holandês Voador” presidencial havia uma cópia pirata do DVD que, segundo a distribuidora, só chegará às lojas no dia 7 de dezembro deste ano! E a culpa de quem foi? De assessores, lógico, esses irresponsáveis mandaletes que sequer informaram ao Presidente da República que ele estava participando de um delito previsto no Código Penal Brasileiro.

O Artigo 180 do CP define Receptação Culposa: § 3º - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso. A pena, neste caso, é descrita pelo Art. 155 do CPB, § 4º - ... reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido: II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza.

Em 14 de outubro de 2004, o Ministério da Justiça criou o Conselho Nacional de Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (Decreto nº 5.244), presidido pelo secretário-executivo do Ministério. Conta com a participação de representantes dos ministérios da Cultura, Relações Exteriores, Fazenda, Ciência e Tecnologia, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e do Trabalho, além da Câmara, do Senado, das polícias Federal e Rodoviária e da iniciativa privada.

No lançamento do Conselho, disse o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos: "A pirataria é uma das muitas faces do crime organizado, envolve lavagem de dinheiro, homicídio e violência, além dos imensos prejuízos que está trazendo a nação brasileira", citando dados divulgados pelo Instituto Mackenzie que indicam que a pirataria movimenta anualmente 56 bilhões de reais, além de custar dois milhões de postos de trabalho e 84 bilhões de reais em impostos que deixam de ser arrecadados.

No Brasil, 33% dos produtos de fumo, bebidas e combustíveis são ilegais. No setor literário, 200 milhões de cópias ilegais são feitas todos os anos, diz a Agência Brasil. No setor de software, a comercialização ilegal afeta 61% dos programas e 70,4% dos equipamentos vendidos, segundo a Associação das Empresas de Software (Abes), causando a perda de 45 mil vagas de emprego e 1,4 bilhão de reais a menos nos cofres públicos.

Enquanto isso, no avião presidencial, na viagem Rússia-Brasil, alguém fazia um negócio da China. O filme pirateado “Os dois filhos de Francisco”, segundo a Sony Pictures, já possui meio milhão de cópias piratas em circulação, sem pagar um tostão de imposto. O presidente da república estava assistindo confortavelmente a uma dessas cópias.

Mas, para algumas pessoas, crime é apenas aquilo que os outros cometem. Certas pessoas acreditam firmemente que estão muito acima da lei, que são superiores a outras, que os códigos devem ser imputados a todos aqueles que se localizem diante de seus caminhos. Para algumas pessoas, mentir é mera dialética e roubar é algo até plausível. Há pessoas que pensam diferente, pois até se crêem diferentes. Em maior ou menor grau, seitas, religiões e crenças descabidas podem criar essas inversões de valor, criando mentirosos contumazes que acabam, pela repetição da mentira, acreditando nelas piamente. Vemos diariamente na TV, nos telejornais, diversos políticos e seus amigos mentindo, acreditando que estão convencendo e, portanto, aumentando o volume da mentira. Uma cópia pirata de um DVD não é crime, se o lugar onde for encontrada estiver recheada de petistas. Coisa de visionários.

Só que o Brasil, país de nobre povo, descobriu em Nietzsche que “visionário é aquele que mente para si mesmo; mentiroso, para os outros”.

O Brasil já descobriu que não precisa de corsários, visionários nem mentirosos. Precisa é de um novo governo.

4 de nov. de 2005

O PT trucou. Hora de a oposição gritar: “Seis, ladrão!” - por Reinaldo Azevedo

O PT é mesmo um show. No exato instante em que se prova o escândalo Visanet-BB-Valério-PT, revelando uma parte ao menos da origem da dinheirama que irrigou o delubioduto-valerioduto, somos informados de que emissários do petismo — Antonio Palocci e Márcio Thomaz Bastos — estariam encarregados de negociar um armistício com as oposições. Não um armistício qualquer, é claro. Seria algo bem à moda daqueles grupos islâmicos que se dizem de resistência: “Ou fazem o que queremos ou explodiremos inocentes”. A plantação vem com tudo: nome e sobrenome.

Assim se negocia a paz segundo se lê: caso PSDB e PFL flertem com o impeachment ou queiram chamar para depor Lulinha (Telemar) da Silva, então o PT ressuscita o Dossiê Cayman e joga na roda o filho de FHC e a filha de Serra. Sob qual acusação? Qualquer uma. A que der na telha. Contra fatos — como o conúbio Visanet-BB-Valério-PT e a injeção de recursos da Telemar na empresa do filho de Lula —, oporiam boatos, mentiras, feitiçarias, tanto faz. A lógica desse tipo de jogo mafioso é a seguinte: guerra é guerra.

O Dossiê Cayman é mais falso do que uma nota de R$ 3. O próprio PT o rejeitou à época porque percebeu que era uma roubada. Seus autores foram presos. O assunto só prosperou na mídia porque a ordem era caçar tucanos a qualquer custo. Certos setores julgavam que eles eram o grande mal do Brasil e que pretendiam “mexicanizar” o sistema político — o que, convenha-se, revelava, a um só tempo, ignorância sobre a política mexicana, sobre o PSDB e, claro, sobre o PT, este, sim, com efeito, a coisa mais próxima a que se chegou de um PRI aqui no Brasil. E que continua ativo. De velório ao Judiciário, passando pelos outros dois Poderes, todas as instâncias do Estado, com escala nos sindicatos e nas federações empresariais, o partido está em todo lugar. Mas havia gente querendo caçar tucanos. Preferiam patos selvagens... Eles estão aí.

Tenho lido alguns coleguinhas, ouvido alguns comentários de TV. Os “titios” e as “titias” da mídia estão apavorados com o que chamam “guerra de extermínio”. A última piada é dizer que o confronto abre espaço para uma “terceira via”, que seria, quem sabe?, a via do inferno, com Garotinho ou qualquer outra coisa “menos comprometido com isso que está aí”. Chamo a esse raciocínio de “terrorismo da neutralidade”. Trata-se de puro pensamento mágico com que enganamos criança bagunceira: “Se você não se comportar, Papai do Céu vai ficar triste”. A ameaça, claro, como no caso dos infantes, só interessa à ordem instituída. No momento, quem manda no barraco é o PT.

Pediria aos “titios” e às “titias” que me contassem qual foi o ato tão severo de “agressão” cometido até agora pelas oposições. No máximo, vi Arthur Virgílio (PSDB-AM) e ACM Neto (PFL-BA) ameaçando dar uns sopapos nos petistas, até no presidente da República. É só engraçado: 1) não é grave; 2) não tem a menor importância; 3) só serve para dar corda aos reacionários da imprensa, que preferem fazer essa crítica da suposta “falta de controle”. O senador e o deputado, a esta altura, já devem ter concluído que fizeram mal. Se as palavras fossem para valer, não estaríamos mais falando de política, mas de pugilato. De resto, nesses casos, a gente não fala que vai dar porrada: dá a porrada. A estridência teve um lado positivo: chamou a atenção para a arapongagem que tomou conta do país.

Mas retomo o fio. Nunca houve uma oposição tão cordata. Por muito menos, qualquer outro presidente, a começar de FHC, já teria caído. Lula não cai porque há quem tema seus “bolivarianos” — temor injustificado; em qualquer hipótese, a Constituição teria como ser mantida (os mercadores do apocalipse deveria lê-la...) — e porque a esquerda foi bem-sucedida na acusação patética de que há um golpe em curso. Arma-se um esquema de corrupção que pode ter movimentado R$ 3 bilhões, e acusá-lo, claro, é coisa de golpista...

Não sei quem vazou para a imprensa que Márcio Thomaz Bastos e Antonio Palocci são os emissários da “pax lulista”, negociando com granadas no bolso. Seja lá quem for, está interessado em que se crie a impressão de que todos são iguais e têm o que temer. Ao PT interessa, obviamente, que prospere a suposição de que existe um equilíbrio na precariedade moral, de que ninguém pode atirar a primeira pedra, de que a oposição só não caminha para o pedido de impeachment porque também tem culpa no cartório.

Ademais, a qualidade dos emissários depõe a favor ou contra a guerra. Bastos como mensageiro me parece atribuição de papel incompatível com o ator escolhido. Até os vastos gramados de Brasília sabem que a saída “tudo é caixa dois” passou pela mente do advogado criminalista. E, como se evidencia com o caso Visanet-BB-PT, aquela história está desmoralizada. Palocci, neste momento ao menos, não está em situação mais tranqüila para levar pergaminhos recheados, segundo se diz, de explosivos. Os homens que sustentam a existência da “operação cubana” eram aliados seus. Mais do que isso: eram seus amigos. Mais do que amigos, eram seus auxiliares.

Truco

Quem é do interior de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, norte do Paraná e sul de Minas conhece o jogo de truco. De fato, creio que ele se espalhou por quase todo o Brasil. Não vou explicar as regras (pesquisem) porque é muito fácil de jogar e longo para explicar. Ademais, valem mais a esperteza, a improvisação e a habilidade para blefar — ou seja, as regras que não estão escritas.

A oposição tem sido muito cordata com Lula: tem visto carta sair da manga, sendo passada por baixo da mesa, olheiros informando os adversários — toda sorte de lambança. E tem-se contentado em ganhar e perder um ponto por vez. Num blefe monumental, acuado, sem cartas, o PT dá um murro na mesa e grita “Truco!”. A oposição que não gritar, agora, “Seis, ladrão!” e não pagar para ver não merece nem disputar o poder.

Trata-se de fazer valer a regra do jogo.

reinaldo@primeiraleitura.com.brl
Publicado em 3 de novembro de 2005.
Primeira Leitura