22 de ago. de 2005

NÃO É “CRISE POLÍTICA”, É CORRUPÇÃO

por Alberto Oliva, filósofo - publicado no Diego Casagrande

As crises morais são oportunidades de as sociedades mostrarem sua alma. As mentes partidarizadas têm desprezado com assombrosa caradura fatos estarrecedores sobre os descaminhos éticos do governo e de seu partido. Entristece constatar como a mídia tem se valido de eufemismos ideologicamente construídos para discorrer, cheia de dedos, sobre a estrela vermelha que vem sendo coberta de marrom fétido. A fração da imprensa que antes se omitia diante das falhas grosseiras de gerenciamento, dos projetos autoritários – Ancinav, Conselho Federal de Jornalismo – e dos discursos escalafobéticos do presidente agora esvazia o conteúdo avassalador da roubalheira sistêmica rebatizando-a como “crise política”. A contundência dos fatos torpes e das mentiras deslavadas é atenuada pelo uso de expressões anódinas. Os direta e indiretamente envolvidos nos escândalos mencionam vagos erros de companheiros quando suas frases têm como sujeitos ocultos contumazes ladravazes. O ilusionismo ideológico não tem escrúpulos: a corrupção mental não se constrange em substituir a ilicitude – juridicamente enquadrável - e o deslize moral – coletivamente condenável – pelo erro vago de tipo operacional ou intelectual. A corrupção das mentes é muito mais grave que a dos bolsos...

Atacando o tempo todo uma elite nebulosamente identificada, os mutreteiros oficiais tudo fazem para explorar a ingenuidade dos que vivem nas trevas do intelecto. A esquerda tenta doutrinariamente transformar o Brasil no país dos pobres, mas o que consegue é torná-lo apenas o paraíso dos pobres de espírito. Juristas em altos postos da república declaram que Collor caiu pela impopularidade, pela indignação que o seqüestro da poupança causou. Quer isso dizer que se a lama da corrupção vier a adentrar claramente o Palácio do Planalto terão os setores lúcidos e críticos da sociedade de fingir que nada vêem se o presidente se mantiver popular. A delitos iguais ou parecidos raramente se aplicam as mesmas penas no Brasil. Nosso país é useiro e vezeiro em dispensar tratamentos diferenciados aos mesmos tipos de crime. Esta a raiz de nossos males coletivos e institucionais: politizamos demais, só falamos no estrutural e perdemos de vista o local, sonhamos com grandes transformações e deixamos de fazer o trivial.

A sociedade civil é fraca porque muitas de suas organizações se mostram dependentes do Estado ou se deixam por ele cooptar. Até grupos que não recebem verbas e subvenções aceitam colocar antolhos ideológicos. Não por acaso, a UNE e a Ubes mudaram de fantasia só porque o governo é do PT: seus manifestantes deixaram de ser caras-pintadas para ser caras-de-pau. É preciso fazer muita ginástica mental, aceitar como normal a cisão esquizofrênica, para se cegar como um Édipo e sair às ruas protestando com impressionante incongruência: contra a “crise política”, exigindo a prisão dos corruptos por meio de cartazes vistosos, atacando a política econômica e defendendo o presidente Lula. Eis o samba do estudante doido. Se os movimentos sociais tivessem efetivamente a intenção de defender o presidente Lula não atacariam sua política econômica, já que até agora é a âncora que tem evitado que o navio da crise fique à deriva.

Quando se sustenta que não há condições políticas para se desencadear o processo de impeachment do presidente da república duas questões vêm à tona. Se a culpa vier a ser objetivamente estabelecida, configurando-se o chamado crime de responsabilidade e mesmo assim parte da opinião pública e setores expressivos dos chamados movimentos sociais continuarem apoiando Lula e lhe hipotecando solidariedade, ainda assim será possível continuar rechaçando a proposição do impeachment? Mas como manter Lula na presidência se vier a ficar insofismavelmente comprovado que se envolveu com o maior esquema de corrupção (sistêmica) de todos os tempos? Como permitir que termine o mandato sem enfraquecer ainda mais as instituições, sem que o País desmoralize ainda mais as instituições? A segunda questão: se parcela expressiva da população é complacente, independentemente dos motivos e das razões que tenha, com um governo contra o qual pesam seríssimas acusações é inevitável inferir que a crise moral é tão grave que gerou conivência até mesmo por parte daqueles que não se beneficiaram nem indiretamente com a corrupção. E pode haver algo mais desalentador?

Ora, caso se configure um nítido descompasso entre o jurídico – uma inequívoca comprovação de ilícitos – e o político – uma razoável popularidade do presidente – será imperioso saber se a opinião pública é desinformada, se demora a se informar ou se é condescendente com a corrupção praticada ou tolerada por governantes carismáticos. Das respostas possíveis, a última revelará uma alma nacional moralmente despedaçada. O partidarismo e a ladroeira impedem que as instituições sejam postas a serviço da realização de objetivos de interesse coletivo e do respeito incondicional a determinados valores. Se a corrupção nossa de cada dia for praticada por poucos e aceita por muitos como normal – todo muito faz! – então se estará diante da constatação de que em nossa sociedade a corrupção é uma doença espiritual.

Quanto à ética, que o PT durante muito tempo se considerou seu puro e lídimo defensor, cabe lembrar dois versos do Canto de Ossanha: “O homem que diz "sou" não é porque quem é mesmo é "não sou"...