21 de jul. de 2005

O BRASIL LEGAL E O ILEGAL

por Alberto Oliva, filósofo - publicado no Diego Casagrande

Assusta ver que o País fica a cada dia mais cindido. Por razões ideológicas, costuma-se prestar atenção apenas nas enormes diferenças subsistentes entre ricos e pobres. Passa praticamente despercebido o fato de que existem dois Brasis - o legal e o ilegal - e que a metade marginal é produto, direto ou indireto, de graves distorções culturais que começaram a se formar desde o alvorecer do processo de formação de nossa nacionalidade. Em muitos casos, legislações artificiais que desconsideram as restrições que a realidade impõe às boas intenções foram decisivas para o aumento exponencial da ilegalidade. Não podendo a lei assegurar benefícios a todos, por “restrições contáveis”, é inevitável que vigore pela metade. É fato que a maioria dos trabalhadores não tem carteira assinada. O espaventoso é que se aceite isso como normal, que nada se faça para diminuir a marginalização. Se a virtude está no meio, como apregoava Aristóteles, então a legislação trabalhista precisa ser urgentemente flexibilizada de modo a abarcar a todos e obrigar as empresas a respeitá-la. O que não é admissível é uma lei ser ampla e rotineiramente infringida. Se o respeito à legislação inibe parte da atividade econômica, urge modificá-la. Hernando de Soto, em El Otro Sendero, observa que a informalidade prolifera quando o Direito impõe regras que excedem o marco normativo socialmente aceito - deixando de amparar as expectativas, escolhas e preferências de quem não pode cumprir tais regras – e o Estado não tem suficiente capacidade coercitiva.

Outro fenômeno que se alastra é o da facilidade com que um número expressivo de pessoas se coloca à margem da lei não pagando pela água e luz que consome e pelo espaço urbano que ocupa. Há uma revolução urgente a ser feita: o País precisa passar a limpo suas leis fundamentais mantendo em vigor apenas as que possam ser universalizadas, isto é, as que possam ser cumpridas sem ir contra os fatos, sem, por exemplo, inviabilizar a atividade produtiva. A sociedade pouco se desenvolverá enquanto tolerar a convivência entre uma metade legal e outra marginal. O grande desafio é reduzir drasticamente o abismo entre o brasileiro oficial e o clandestino. É imperioso atacar as causas responsáveis pela cisão da cidadania. Até porque é inaceitável que numa ponta se tenha o emprego formal - com carteira assinada e todos os direitos assegurados - e na outra o salário sem vínculo empregatício, sem qualquer rede de proteção; que numa extremidade os bandidos armados até os dentes tenham licença para matar e na outra cidadãos de bem proibidos até de portar arma. É grave distorção uns serem cobrados por tudo enquanto outros tudo podem porque nada têm ou porque são vítimas do “sistema”.

No final do mês passado O Estado de São Paulo veiculou informação estarrecedora: quase metade da frota de veículos da cidade de São Paulo roda à margem da lei, sem o licenciamento expedido pelo Detran. Este dado é revelador porque indica que estamos marchando para a anomia. A que atribuí-lo? Será que o elevado valor do IPVA e as multas devidas explicam a opção pela ilegalidade? Pode ser que os proprietários de veículos tenham chegado à conclusão de que vale a pena correr o risco de ter o carro apreendido em virtude de a fiscalização ser esporádica e ser grande a chance de uma pequena propina “resolver o problema”. É alarmante que mais de dois milhões e meio de veículos estejam fora da lei em São Paulo e que no Rio de Janeiro 60% da frota estejam em situação irregular. Como pode uma sociedade se respeitar, ter uma visão positiva de si mesma, infringindo tanto e de forma contumaz as leis que a regem?

O Estado, em sua secular ineficiência, mostra-se omisso nas funções precípuas de fiscalizar, impor a lei e proteger o cidadão. Está na hora de se trocar o discurso populista da “justiça social” em nome do primado básico de fazer valer a Lei (para todos). Sem a ampla vigência do princípio da isonomia, a sociedade se condena à derrocada moral. O desafio é determinar o percentual de marginalidade que resulta da falta de capacidade de pagar e honrar a lei. E o percentual que é produto da desorganização social, da crise de autoridade e de ilicitudes programadas e assumidas. Se há muita informalidade na economia é porque a legislação asfixia as atividades empreendedoras. Se ficar à margem do Brasil legal é imperativo de sobrevivência isso significa que a legislação não é realista. Quando muitos desrespeitam a lei por opção e a sociedade pouco ou nada faz para coibi-los, é forte a tendência à anomia. Falta bom senso quando se impingem leis que não têm como ser universalmente cumpridas e falta autoridade quando se faz vista grossa para o avanço avassalador da ilegalidade. Direitos autênticos são os que podem ser universalizados. Quando alguns direitos só são usufruídos por alguns é porque são artificiais ou então foram arrancados a fórceps por corporações com forte poder de pressão. O Brasil cindido não tem como superar a estagnação em que se encontra. A ampla condescendência com a ilegalidade é sinal de que se aceita passiva e cinicamente duas modalidades de cidadão.