11 de jan. de 2008

Como Nascem as Religiões


Em crônica anterior, prometi falar dos cargos cult. É como se convencionou chamar certas práticas religiosas de movimentos proféticos e salvíficos nascidos do confronto espiritual entre os indígenas das ilhas melanésias e os colonos europeus. Segundo a Encyclopédie des Religions, de Gerhard J. Bellinger, este nome genérico provém de um desses movimentos originado nas ilhas Salomão, em 1931-1932. Segundo outros, tais cultos só teriam surgido quando a marinha americana começou a desmantelar as suas bases aeronavais no Pacífico Sul e o fluxo de mercadorias usado para manter os nativos satisfeitos foi cortado. O termo cargo (em inglês, mercadoria, carga) sublinha o fato de que esses movimentos são fortemente ligados à espera de um avião-milagre, de cargas e de expedição de mercadorias, que chegam às ilhas por via marítima ou aérea. Os cultos do cargo traduziriam a esperança que têm os indígenas de cor de ter acesso aos bens e à tecnologia dos estrangeiros brancos.

A coisa parece ter funcionado mais ou menos assim: os nativos viam chegar alimentos, mercadorias, máquinas, objetos, mas jamais viam os colonizadores fabricando tais mercadorias ou objetos. Viam-nos apenas construindo aeroportos, erguendo postes, rabiscando papéis ou debruçados sobre caixas de metal de onde saem ruídos estranhos. Concluíram então que estes gestos eram rituais mágicos para a obtenção das cargas. E passaram a mimetizar as práticas dos brancos para também obtê-las.

Como mencionei estes cultos em crônica passada, o leitor Vinicius Arcaro me enviou texto de um livro que foi bestseller em meus dias de universidade. Trata-se de O Despertar dos Mágicos, de Louis Pauwels, Jacques Bergier, uma espécie de vigarice ao estilo de Eram os Deuses Astronautas?, livro da mesma época escrito pelo hoteleiro suíço Erich von Däniken. Li o livro na época e esta prática melanésia deve ter-me passado despercebida. Talvez porque a tomasse como mais um delírios dos autores. Vamos ao texto:

Em 1946, as patrulhas do governo australiano, ao aventurarem-se nas altas regiões incontroláveis da Nova Guiné, ali encontraram tribos agitadas por um grande vento de excitação religiosa: acabava de nascer o culto do "cargo". O "cargo" é um termo inglês que designa as mercadorias comerciais destinadas aos indígenas: latas de conserva, garrafas de álcool, candeeiros de parafina, etc. Para esses homens ainda na idade da pedra o súbito contacto com semelhantes riquezas não podia deixar de ser profundamente perturbador. Seria caso que os homens brancos pudessem ter fabricado tais riquezas? Impossível.

É evidente que os Brancos são incapazes de construir com as próprias mãos um objeto maravilhoso. Sejamos positivos, era mais ou menos o que pensavam os indígenas da Nova Guiné: já alguma vez se viu um homem branco fabricar fosse o que fosse? Não, mas os Brancos dedicam-se a tarefas muito misteriosas: vestem-se todos da mesma maneira. Por vezes sentam-se diante de uma caixa de metal sobre a qual há mostradores e escutam ruídos estranhos que de lá saem. Fazem sinais sobre folhas em branco. Trata-se de ritos mágicos, graças aos quais obtêm dos deuses que estes lhes enviem o cargo.

Os indígenas resolveram então copiar esses "ritos": experimentaram vestir-se à européia, falaram para dentro de latas de conserva, espetaram troncos de bambu sobre as suas choupanas, a imitarem antenas. E construíram falsas pistas de aterragem, na expectativa do cargo".

Em Quest in Paradise (apud Richard Dawkins), David Attenborough descreve o novo culto:

Eles (os brancos) construíam mastros altos com fios ligados a eles; ficavam sentados ouvindo pequenas caixas que brilhavam e emitiam barulhos curiosos e vozes abafadas; convenciam o povo local a usar roupas idênticas e o faziam marchar para lá e para cá – e seria quase impossível imaginar uma ocupação mais inútil do que essa. O indígena então percebe que a resposta para o mistério está na sua cara. Essas ações incompreensíveis são os rituais utilizados pelos brancos para convencer os deuses a enviar a carga. Se o indígena quiser a carga, também ele tem de fazer aquelas coisas”.

Ainda segundo Attenborough, “antropólogos perceberam dois focos distintos na Nova Caledônia, quatro nas Salomão, quatro em Fiji, a maioria delas bastante independente e sem ligação entre si. A maioria dessas religiões afirma que um messias específico trará a carga quando o apocalipse chegar”.

Ou seja, nada mais fácil do que criar uma religião. Desde que se respeite um pressuposto: urge que exista uma sólida base de ignorância. Os cultos do cargo têm um valor antropológico extraordinário, ao demonstrar como nascem as religiões.

O patriotismo, de fato, é último refugio dos canalhas

Asqueroso!

Eis uma boa palavra para definir certo jornalismo que resolveu transformar a operação de compra da Brasil Telecom pela Telemar num ato de resistência nacionalista. Segundo a versão oficial ditada por Franklin Martins e pressurosamente espalhada por áulicos, anões, mascates e jornalistas “dualéticos”, Lula, o Numinoso, quer criar uma grande empresa nacional para competir com as gigantes estrangeiras — caso contrário, as brasileiras seriam engolidas. Por isso, mobilizou o governo para dar suporte à operação. Com um detalhe: nunca antes nestepaiz se fez um negócio bilionário que depende de uma mudança ad hoc da lei: se Lula não alterar o decreto da Lei das Outorgas, nada feito. Mas ele prometeu mudar. Seu amigo Sérgio Andrade, da Andrade Gutierrez, ficará feliz. Carlos Jereissati, da Telemar, sócia de Lulinha da Gamecorp, também.

Alguma novidade nisso? Não, como ficou evidente aqui. VEJA havia noticiado a “operação” em dezembro de 2006. O mais curioso é que a máquina de propaganda oficial resolveu que a verdade dos fatos é pura conspiração do capeta de plantão, Daniel Dantas. O que se tem aí não passa de escárnio legal. Quer dizer, então, que o presidente só aceita mudar a lei para beneficiar uma empresa se ela se submeter a determinadas condições, é isso? Os fundos de pensão só topam negociar se não houver empresas estrangeiras na parada? Esperem aí: estamos falando de um país institucionalmente organizado ou de uma república bananeira?

Cada um vende a sua participação numa empresa a quem quiser, de acordo com a legislação. É do capitalismo. Mas o que se está fazendo, no caso, é um megacartório. Somos informados de que o dinheiro do BNDES só sairá se for um negócio entre A e B; somos informados de que os fundos de pensão só aceitam a operação se C e D não participarem. Se a Telemar, a sócia de Lulinha, quiser comprar a Brasil Telecom, o governo oferece facilidades, mas, se for a Telefonica, nem pensar, é isso? A Constituição Brasileira voltou a discriminar empresa estrangeira, e o país não foi avisado?

Ah, sim: a seu amigo Sérgio Andrade, Lula teria dito que não mudará a lei se descobrir que a operação visa apenas a interesses comerciais. Ufa! Ainda bem que esse grande patriota nos protege! Agora entendi: tudo está sendo feito para o nosso bem e em defesa dos interesses nacionais.

Vá lá. Não espero dessa gente nada de muito diferente. O que provoca minha náusea profissional é o jornalismo patriota. O patriotismo, definitivamente, é o último refúgio dos canalhas.