23 de abr. de 2008

O Redespertar de uma Consciência


Convém não ter ilusões. Apesar do que se diga em Brasília, a fala do General Heleno no Clube Militar não foi manifestação estritamente pessoal. Que nos círculos governamentais assim se pense e diga à imprensa compreende-se; na realidade, teme-se — e daí se insistir no caráter pessoal da fala do Comandante Militar da Amazônia — que, ao dizer que o Exército serve o Estado e não ao Governo, o General Heleno tenha sido o porta-voz de amplos círculos militares, a começar pelo Alto Comando do Exército, que julgam ter chegado a hora de o Exército (e, por sua voz, as Forças Armadas) recuperarem o papel que a História fez dele com justiça: partícipe das decisões que dizem respeito ao Estado.

O Comandante Militar da Amazônia deixou isso bem claro, quando disse que se oferecia para discutir com todos a política indigenista do Governo Lula, vale dizer, a avidez em demarcar terras e em criar as condições para que mais dia menos dia as “nações” indígenas reclamem sua autodeterminação e a criação de Estados indígenas, parte integrante da República Federativa do Brasil, como os 27 Estados que mandam representantes ao Senado... Isso para não dizer que esses “Estados indígenas” poderão, à maneira de Kosovo, reclamar independência e assento na ONU. Afinal, o Brasil não votou a favor da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada na ONU contra o voto dos Estados Unidos, da Austrália e da Nova Zelândia, também países com minorias indígenas, que deixaram bem claro que o documento compromete a sua soberania? Para o delegado brasileiro, seguramente seguindo as instruções do Itamarati, a soberania brasileira (seja o que for que este entenda por isso) nunca esteve em risco. O Exército não foi consultado sobre esse voto comprometedor. Aliás, convém também lembrar que, quando o Presidente Collor demarcou a reserva Ianomâmi, o General Heleno, que representava o Exército na comissão encarregada de resolver a questão, foi contra a demarcação de terras contínuas, temendo exatamente por arranhões na soberania brasileira.

A fala do General Heleno — e quem pôde ver, na TV Globo, alguns minutos dela, terá observado que ele estava emocionado — tem dois sentidos sobre os quais é preciso atentar, no início do processo de fermentação de uma crise que não é político-militar (embora tenha aí seus aspectos), mas que é militar-institucional, fundamentalmente.

O primeiro sentido é o que salta aos olhos: o Exército teme que a ação governamental conduza, mais dia, menos dia, a que a soberania brasileira seja atingida. O assalto irá verificar-se sob amparo da ONU, docemente constrangida pela ação da miríade de ONGs que insistem em defender os direitos dos povos indígenas, como se brasileiros esses povos não fossem, e dos Governos estrangeiros que reclamam o Direito de Ingerência na Amazônia para salvar a humanidade...

O segundo é mais importante: o Exército reclama efetiva participação na elaboração das políticas que comprometem a soberania. Não se trata apenas de dizer que a função constitucional do Exército é defender as fronteiras. A Constituição não fala em “soberania”, mas o General Heleno sabe (e o Alto Comando do Exército assim pensa) que o que está em jogo, quando se insiste em fazer que terras indígenas sejam contínuas, é uma ação governamental que escancara as portas para que as tribos remanescentes se constituam “nações” e, depois que assim elas sejam reconhecidas, constituam “Estados”. O público em geral pode não ter refletido sobre o que significa o fato de um deputado apresentar projeto de lei concedendo passaporte a índios. O Exército meditou nisso e em outras providências e tirou delas as conseqüências. O conflito em torno da reserva Raposa do Sol apenas deu ao General Heleno, secundado, no Clube Militar, pelo aplauso do General Comandante do Comando Militar do Leste, a oportunidade de dizer o que o Exército pensa.

É preciso completar o raciocínio: não se trata apenas de permitir ao Exército participar da elaboração das políticas; trata-se de fazer que a voz do Exército não seja sufocada, em comissões, pela de tantos civis quantos sejam necessários para dar, às decisões que atingem aquilo que se sabe ser a soberania (para não dizer o bom senso), o “caráter democrático” que o mundo de hoje (?) reclama.

Há um outro sentido nas frases do General Heleno: tomou posição contra a palavra e a voz, para não dizer os atos, da esquerda que — à la Nelson Rodrigues, que fala em “padres de passeata” — chamou de “esquerda escocesa”.

A intervenção do General Heleno na mesa-redonda organizada pelo Clube Militar foi o momento publicamente ostensivo (com perdão da redundância) da retomada de consciência do Exército de que ele serve o Estado e não Governos; e de que, sabedor de sua missão e função moderadora (controladora) das paixões cosmopolitas daqueles que nos governam, quer decidir. Aliás, é importante notar que não houve reação governamental às falas do General Heleno na TV Bandeirantes e na Fiesp, quando externou posições que teriam exigido igualmente, à luz dos critérios do Planalto, a interpelação do chefe de Estado, que apenas se sentiu desagradado com a repercussão (isto sim!) da fala no Clube Militar.

Escrevo antes que se saiba o desfecho desse "combate" — pois é disso que se trata. De um "combate" e não de um “entrevero" particular. É provável que, para manter intacto o “princípio do chefe”, o Ministro Jobim decida demitir o General Heleno do Comando da Amazônia. Poderá fazê-lo, seguindo o RDE. Mas não lhe poderá retirar as quatro estrelas, nem proibi-lo de ter assento no Alto Comando, ainda que em função meramente burocrática. Poderá também seguir o exemplo dado pelo Presidente Goulart, que agregou o General Cordeiro de Farias a função nenhuma, mas não pôde retirar-lhe a condição de General da Ativa.

A consciência do velho e sempiterno Exército — o de 1840 e de 1889 — finalmente redespertou para o público pensante. Resta saber o que o Ministro da Defesa, especialista em incluir ou rever artigos de uma Constituição a ser promulgada, fará para salvar a face de seu chefe, e salvar a face da chefe da Casa Civil, que, nos tempos em que os mosqueteiros tinham honra e Luis XIII governava por direito divino, seria confundida com Richelieu.

O alerta do titular do STF


O problema é de “padrão civilizatório”. Poucas vezes um observador da cena política brasileira, figura pública ainda por cima, conseguiu sintetizar em duas palavras carregadas de significado a essência dos desvios de conduta que se acumulam na era Lula: mensalão, aloprados e dossiês, para citar apenas os mais gritantes. O autor da expressão é o jurista Gilmar Ferreira Mendes, que assume hoje, por dois anos, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), no lugar da ministra Ellen Gracie. “Acredito”, disse ele em entrevista ao Estado, publicada na edição de segunda-feira, “que é preciso trazer a luta política para outro padrão civilizatório.”

A entrevista decerto representa um dos mais fundamentados convites à reflexão sobre a atualidade nacional abertos ao grande público - pois outro não é o sentido dos seus argumentos nem devem eles ser entendidos como mero movimento numa batalha política subalterna. O ministro respalda, em última análise, a percepção dos que ainda não sucumbiram ao rolo compressor do lulismo, segundo a qual a mentalidade da nova elite dirigente legitima a apropriação do aparelho de Estado para a produção em série de atos que põem em risco os avanços alcançados pelo País, no pré-Lula, para a consolidação do sistema democrático. É o credo confortável de que os fins justificam os meios - sendo o fim primeiro, naturalmente, a permanência no poder.

O novo titular do STF recorre a um conceito clássico da ciência política - patrimonialismo - usualmente aplicado às práticas das velhas caciquias quando se aboletam em qualquer instância de governo para nele se manter indefinidamente. À primeira vista, poderia parecer paradoxal que o PT, tendo chegado ao poder envolto na bandeira da moralização dos costumes políticos - como condição necessária ao combate efetivo à miséria e à desigualdade -, reproduza os comportamentos dos quais apregoava ser a antítese. Mas é patrimonialismo puro, por exemplo, acionar a estrutura do Estado para a confecção do que não passa de um instrumento de coação política, o preparo de um rol seleto de gastos palacianos pagos com cartões corporativos na gestão Fernando Henrique.

“Eu acho que fala mal do nosso processo civilizatório a cultura do dossiê, da chantagem, do constrangimento”, julga Gilmar Mendes. “Revela um patrimonialismo porque as pessoas têm a noção de que essas informações, às quais tiveram acesso apenas por serem funcionárias públicas, lhes pertencem, pertencem ao seu partido ou à sua causa e, portanto, podem fazer o uso que bem entenderem disso.” Se isso não é privatizar o poder, fica difícil imaginar o que seja. A questão de fundo, de todo modo, é a dos efeitos potenciais dessa perversão para a democracia. Já não se trata, no caso, da preservação dos direitos e liberdades fundamentais que lhe são inerentes.

Se a ordem democrática é a da conquista do governo mediante eleições livres, competitivas e regulares, assegurada a plena manifestação do pensamento, é também a do respeito, por parte dos vitoriosos, à integridade da coisa pública. É o que respalda a convicção do jurista de que “a tentativa de aparelhamento do aparato estatal não é uma atitude democrática”. Mendes exemplifica: “Eu não posso ter um procurador a meu serviço, não posso ter um agente da Polícia Federal a meu serviço enquanto entidade partidária, não posso induzir um agente da Receita a fazer a investigação que quero contra o meu inimigo.”

Eis por que, apropriadamente, ele aconselha “os nossos muitos dirigentes que se dizem fãs de Lenin, Trotski” a ler Karl Popper e Norberto Bobbio, os grandes pensadores da liberal-democracia. Pode esquecer. A “cultura do dossiê” não se voltará contra o lulismo enquanto as coisas continuarem a ser o que são. É ominoso constatar, por exemplo, que, segundo pesquisas de opinião, o escândalo da vez teria até servido para dar à ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, apontada como genitora da operação, mais do que obteve, presumivelmente, nos “comícios” (palavra dela) em que o presidente a apresenta como “mãe do PAC”: visibilidade e simpatia.

A propósito, soa definitivo o comentário que se atribui ao governador paulista José Serra: “O povo não sabe o que é dossiê. Acha que é um doce.

O quilombo do mundo


"O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras"

Barack Obama, num debate eleitoral, na última quarta-feira, respondendo a uma pergunta sobre as cotas raciais: – Se olharem minhas filhas, Malia e Sasha, e disserem que elas estão numa situação bastante confortável, então (raça) não deveria ser um fator. Por outro lado, se houver um jovem branco que trabalhe, que se esforce, e que tenha superado grandes dificuldades, isso é algo que deveria ser levado em consideração. Barack Obama costuma mudar o discurso de acordo com a platéia. O que ele disse a uma platéia branca em Filadélfia pode perfeitamente ser desmentido daqui a uma semana, diante de uma platéia negra numa igrejinha batista, no interior da Carolina do Norte. Mas o fato é que ele quebrou um tabu e defendeu abertamente o fim das cotas raciais. O poder público, segundo ele, tem de ajudar os pobres em geral, conforme os méritos de cada um, e não os negros em particular. O Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos. E macaqueou tarde, num momento em que o próprio candidato negro à Casa Branca já admite aboli-lo. O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras. O ministro Carlos Ayres Britto deu um voto a favor do sistema de cotas raciais, argumentando o seguinte: "É pelo combate a situações de desigualdade que se concretiza o valor da igualdade". Isso se aplicaria se a desigualdade se originasse na universidade. A gente sabe que a realidade é outra. A gente sabe que a desigualdade nasce no ensino básico, e é lá que ela tem de ser combatida. A má qualidade da escola pública cria uma casta de párias analfabetos, os intocáveis da tabuada, dalits brancos e negros, que nunca poderão se igualar aos que estudam na escola particular. É desolador ter de repetir sempre a mesma lengalenga. E a lengalenga é: o Brasil gasta dinheiro de mais na universidade e dinheiro de menos no ensino básico. Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro. A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos. Se o Brasil fizesse o mesmo, cobrando mensalidade na universidade pública, sobraria mais dinheiro para investir onde importa: no bê-á-bá. O sistema de cotas raciais foi rapidamente introduzido na universidade brasileira, beneficiando-se de um ambiente que sempre soube acolher as idéias mais regressivas, como o petismo bandoleiro e o parasitismo estatal getulista. O Brasil se refugiou no passado. O Brasil é o quilombo do mundo.

A cabra-cega e o partido sectário

por Rosângela Bittar, no Valor Econômico

Registra-se uma mudança essencial na ação do Movimento Sem Terra nos últimos dois anos que leva à convicção de que o MST está se transformando em partido político. Talvez isto não tenha se oficializado ainda pelas divisões internas e temor generalizado das perdas de bandeira, verbas, poder, base, por sinal presentes nas perspectivas do movimento.

O MST ocupa ferrovias, rodovias, invade empresas privadas e bancos, o tema do combate às multinacionais domina o discurso das lideranças, tudo isto já está inteiramente dissociado do seu objetivo inicial, sua razão de ser: a reforma agrária. A terra deixou de ser o foco dos sem-terra.

íntegra no Diego Casagrande