25 de fev. de 2006

Democracia e linguagem

por Pedro Sette Câmara no Instituto Millenium

Lembro de um pronunciamento em que o então sempiterno candidato Lula dizia que “democracia é as pessoas terem comida na mesa”. Numa taba de índios as pessoas têm comida (talvez não na mesa, mas creio que nem Lula diria que a mesa é essencial para sua tese) e não vivem num regime vagamente democrático, e sim coletivista-aristocrático. Ninguém discordará que é desejável que todas as pessoas tenham comida na mesa, mas Lula foi original ao associar isto à democracia. Ele até poderia dizer que a boa alimentação dos cidadãos é importante para a democracia, mas esta nunca seria definida por aquela. A democracia diz respeito à vida social, política; não à vida nutritiva, biológica. Talvez a maneira mais eficaz de colocar comida na mesa de todos os habitantes de um país seja até a menos democrática. Mas não sei quantas pessoas, abordadas a esmo na rua, nas melhores partes das maiores cidades, responderiam que democracia é um sistema político que prevê igualdade de direitos entre os cidadãos, com um governo eleito, em vez de dizer que democracia é a realização de seus desejos pessoais.

É que um dos traços mais misteriosos da cultura brasileira é a facilidade com que palavras e expressões são adotadas sem que seu sentido tenha sido compreendido. As oportunidades, por aqui, são fartas para quem deseja abusar da linguagem; não é à toa que a imagem arquetípica do político brasileiro é a do personagem Odorico Paraguaçú, que sem medo de ser feliz fazia dos verbos substantivos (hoje vício acadêmico consagrado), dos adjetivos advérbios, e dos advérbios duplos advérbios. Sua linguagem convoluta e vazia era pomposa e produzia emoções nas platéias caricaturalmente imbecis e/ou interessadas em favores do prefeito de Sucupira. A indefinição dos discursos do político verdadeiro e do fictício são irmãs; certamente também irmãs – ou equivalentes sintomas da mesma doença cultural – de letras de música sem o menor sentido como “açaí guardiã / zum de besouro / um ímã” (sendo que na última palavra até a sílaba tônica é mudada de lugar): em que pese o fato de a letra de música ser subtexto musical e não texto propriamente dito, ainda assim a total ausência de significado em nome da sonoridade é tão Paraguacesca quanto a “democracia” de Lula. Isto é, feita para os ouvidos, não para a inteligência.

Porém, assim como o leitor não pode aceitar-se semelhante e irmão destas figuras, rir ingenuamente de Odorico e aceitar a indecorosa cosquinha no tímpano de Djavan, também não deve facilmente perdoar o abuso de linguagem como uso retórico pelo então candidato, porque o risco que uma população rica de mente fraca e condescendente corre é o de se tornar tão fácil de ser subjugada e tornada dependente por uma cleptocracia quanto um bando de indigentes e esfomeados.