5 de mar. de 2008

Coisa digna de republiqueta


Resumo: Se não fosse trágico do ponto de vista institucional, seria uma gostosa ironia ver como o governo petista trabalha para ajudar a reerguer um dos símbolos do sempre execrado “imperialismo ianque”.

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Um dos pilares do Estado de Direito é a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de classe, religião, raça, etc. Este é um princípio tão importante que o filósofo Montesquieu comparava a lei à morte, que não poupa ninguém. Já Voltaire o associava à liberdade e ensinava que o homem é livre quando não tem que obedecer a ninguém, exceto às leis.

Uma das pedras angulares da Revolução Americana, que produziu a nação mais próspera do planeta, além da democracia moderna mais duradoura, foi exatamente a premissa de que ninguém está acima da lei e, portanto, os homens devem ser governados por ela, não por outros homens. Thomas Paine, um dos inspiradores da famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com muita propriedade, ensinava: “se nos governos absolutos o rei é a lei, então em países livres a lei deve ser o rei”.

Ao longo da história, o Estado de Direito – ou Império da Lei, na tradição anglo-saxônica – tem sido a maior garantia contra a tirania e o despotismo, atuando como limitador do poder dos governos e garantidor dos direitos individuais. No sentido de regime de Direito formal, atua como salvaguarda da isonomia (antítese do governo arbitrário), proibindo a concessão, pela autoridade, de privilégios legais a determinados indivíduos ou grupos.

Sob o olhar complacente da opinião pública, estamos prestes a testemunhar um gravíssimo atentado contra o Estado de Direito, coisa digna de republiqueta sem compromisso com a ética pública mais elementar: a fusão de duas das maiores empresas de telefonia do país, com o beneplácito formal do Governo Federal e da outrora independente (hoje encabrestada) Anatel, que planejam alterar, a pedido dos interessados, o Plano Geral de Outorgas (PGO) – editado no governo anterior – para dele retirar preceito formal que veda expressamente tal fusão.

O simples fato de essa negociação vir a público já seria um absurdo, passível de punição exemplar em qualquer lugar civilizado. Muito pior, no entanto, é saber que as autoridades responsáveis, além de fazer vista grossa diante de um ato ilegal amplamente noticiado pela mídia, cogitam ainda alterar a legislação para permitir a indigitada operação, utilizando como justificativa um discurso nacionalista tão grandiloqüente quanto oportunista e extemporâneo.

Não se discute aqui a conveniência econômica do negócio para o país, nem tampouco a competência administrativa do governo para alterar o PGO por decreto. O problema é de legitimidade e oportunidade, à luz do Estado de Direito. É lamentável que o poder discricionário outorgado pela sociedade à autoridade pública, que deveria ser usado exclusivamente nos limites estritos da lei e em defesa da ordem pública, esteja sendo escancaradamente utilizado para promover interesses econômicos de grupos empresariais.

A coisa torna-se ainda mais estranha e inexplicável quando se sabe que uma das beneficiárias da estrovenga é a mesma empresa que, logo após a posse do Governo Lula, investiu um volume considerável de dinheiro numa pequena firma de programação, jogos e entretenimento – então recém-criada e sem qualquer tradição no mercado – que tem como um de seus principais sócios o filho mais velho do presidente.

Não satisfeitos em alterar as regras do jogo para autorizar um negócio privado, os áulicos ainda pretendem viabilizar financeiramente a operação, disponibilizando recursos do BNDES (subsidiados pelo contribuinte) para indenização dos acionistas da empresa encampada – entre os quais aparece o Citibank, maior banco dos Estados Unidos, cujos últimos resultados indicam perdas significativas por conta da recente crise hipotecária naquele país.

A propósito – se me permitem uma digressão – não fosse todo esse imbróglio uma verdadeira tragédia institucional para o país, poderíamos até dar boas risadas pela ironia de ver o esmero com que trabalha o governo petista – comandado justamente pela corrente bolchevista (Campo Majoritário) do partido – para ajudar a reerguer um dos símbolos do sempre execrado “imperialismo ianque”.