9 de mai. de 2007

SOBRE NIETZSCHE, DEUSES E MIOLO DE PICANHA

Ao que tudo indica, com a vinda do papa ao Brasil, as pesquisas sobre religião parecem ter entrado na ordem do dia. Neste domingo, foi a vez do DataFolha . Que chega à conclusão de que 97% dos brasileiros dizem acreditar em Deus. Dúvidas, só têm 2%. Quanto a nós ateus, ficamos reduzidos a 1% do universo pesquisado.

Os pesquisadores que me desculpem, mas ponho sob suspeição estes dados. A pergunta pela existência de Deus é muito subjetiva. Se eu perguntar pra Dona Maria da quitanda se Deus existe, tenho 100% de chances de que ela responda afirmativamente. Mas se insistir e perguntar qual deus ela acredita que exista, Dona Maria vai embatucar e provavelmente vai dizer: "no Deus, ué!, naquele que está lá em cima". Ocorre que deus não é um só, e só na Bíblia há vários. Há desde aquele deus antropomórfico, que visita pessoalmente Sara e entra em pugilato com Jacó, nos primeiros momentos do Gênesis, até aquele deus que se intitula o Deus dos Exércitos e ordena massacres dos povos que não lhe prestam vassalagem. À medida em que Israel cresce em poder, Javé se torna mais impessoal, mais distante e mais surdo ao clamor dos povos. No Novo Testamento surgirá um outro deus, o encarnado, que se pretende amoroso. Mas no Apocalipse promete voltar para ceifar o resto da humanidade. Isso sem falar no Espírito Santo, o deus preferencial dos pentecostais, e a Maria (nada a ver com a Dona Maria da quitanda), mortal elevada à condição de deusa. O católico inculto não sabe. Mas, calculando por baixo, ele crê no mínimo em quatro deuses: Jeová, Jesus, Paráclito e Maria. O antigo politeísmo grego, expulso do Ocidente pela porta, voltou voando pela janela.

(Pausa para o almoço. Estas bíblicas reflexões me fazem evocar o miolo de picanha que comi hoje no Tranvia, um acolhedor restaurante uruguaio cá do bairro. Judeus, não sei se o leitor sabe, não comem picanha. E por que? Aí entra a luta de Javé com Jacó. Jacó acabava de atravessar o vau do rio Jaboque, com suas duas mulheres, suas duas servas e seus onze filhos, quando foi desafiado por um homem com quem lutou até o romper do dia. Quando este viu que não conseguia vencer Jacó, tocou-lhe a juntura da coxa, que foi deslocada. O oponente de Jacó era Deus, que lhe deu um novo nome: "Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; porque tens lutado com Deus e com os homens e tens prevalecido". E que tem tudo isso a ver com a picanha, se perguntará o leitor? Diz o hagiógrafo: "Por isso os filhos de Israel não comem até o dia de hoje o nervo do quadril, que está sobre a juntura da coxa, porquanto o homem tocou a juntura da coxa de Jacó no nervo do quadril". Os judeus são homens que conhecem deus a fundo e seguem seus mínimos preceitos. Azar deles. O miolo de picanha estava ótimo. Fim da pausa para o almoço).

É claro que a Dona Maria da quitanda nem suspeita disto. Ela talvez imagine que o deus bíblico seja um só. Pode também ocorrer que sequer creia neste deus das Escrituras. Sua concepção pode ser -como ocorre com muita gente que não gosta de freqüentar padres nem igrejas - de um deus vago e indefinível, algo que estaria na origem das coisas, mas que hoje, à semelhança dos deuses gregos (voltarei outro dia ao assunto), pouco se importa com o que acontece ou não acontece com os mortais. A pergunta pertinente, mas ausente no bestunto dos pesquisadores de opinião, seria esta: em que deus você crê? Muita gente, se levasse a pergunta a sério, acabaria talvez concluindo que não crê em nenhum.

Do total dos crentes, 86% acredita totalmente que Maria deu a luz a Jesus, sendo virgem. Mas entre os católicos este índice é de 88%. Quer dizer, um significativo percentual dos católicos não aceita o dogma talvez mais importante de sua igreja. E 93% de todos os entrevistados (95% dos que se dizem católicos) disseram crer que Jesus ressuscitou após morrer na cruz. Onde passa boi, passa boiada. Uma vez engolida a mentira maior, as menores passam dançando pelo esôfago.

Para don Geraldo Majella, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, estes dados "revelam que, no Brasil, o povo conserva um forte espírito religioso, não acompanhando a secularização radical de outros países". Em um país em que a Igreja Católica perde adeptos em ritmo acelerado, para um prelado é reconfortante saber que as pessoas pelo menos acreditam em deus. Os sacerdotes, não importa a qual religião pertençam, são todos cúmplices. Você não vai ver um padre tecer críticas ao judaísmo ou islamismo. Tampouco vai ver um rabino ou um mulá tecer críticas ao catolicismo. Crer em deus já é meio caminho andado para qualquer um deles. Essas pesquisas irresponsáveis, feitas sob medida para agradar ao bispo de Roma, em verdade pouco ou nada dizem sobre a religiosidade do brasileiro.

Os deuses gregos morreram. Morreram de rir, dizia Nietzsche, ao ouvir que no Ocidente havia surgido um que se pretendia único.