Reinaldo Azevedo - Veja impressa
E não é que o pensamento social moreno resolveu inventar? Num rasgo de criatividade, deu à luz uma jabuticaba teórica que chamarei aqui de Antropologia da Maldade. O seu objeto de estudo – ou de culto – são os índios bororos que moram nos morros do Rio. Ou os nhambiquaras do Capão Redondo, em São Paulo. Ou os caetés da periferia de Vitória. Ou os tupiniquins de qualquer aglomerado pobre do Brasil. A exemplo de boa parte das idéias inúteis que circulam no país, os antropólogos da maldade estão nos cursos de humanidades e ciências sociais das nossas universidades, mas também se espalham pelas redações e chegam à televisão. Ocupam ainda posições de estado. Sua sacerdotisa midiática é a atriz Regina "Casebre". A cada vez que ela proclama que "a periferia é o centro" – ou o contrário, sei lá –, somos remetidos imediatamente aos versos do inglês Auden (1907-1973): "And the crack in the tea-cup opens / A lane to the land of the dead". A fenda na xícara de chá abre uma vereda para a terra dos mortos.
Sei que pôr Auden e Regina Casé num mesmo parágrafo pode parecer certo
exagero. Comentando esses mesmos versos num texto da década de 70, o jornalista
Paulo Francis (1930-1997) observou que a xícara de chá representava a velha
ordem do Império Britânico e de suas classes dominantes. Trincada a xícara – um
mundo, então, que desaparecia –, abriu-se caminho para as tragédias das duas
grandes guerras. Nossa "xícara" é outra. Não chegamos a ter uma
"aristocracia", mas já tivemos algumas ambições. O certo é que a
Antropologia da Maldade decidiu fazer da barbárie uma civilização.
Um antropólogo da maldade não acredita ser possível ensinar matemática
ou a poesia de Camões e Manuel Bandeira ao morro ou à periferia, mas está certo
de que o morro e a periferia é que têm de ensinar funk e rap aos
"imperialistas" e aos "playboys", já que se trataria da
expressão de um novo sistema de valores. É como se aquela
"civilização" já não fosse a nossa. Perguntaram certa feita ao
antropólogo francês Lévi-Strauss (na verdade, nascido em Bruxelas) se ele havia
se identificado com os índios que estudara. "De modo nenhum!",
respondeu. Os nossos antropólogos da maldade não chegam exatamente a se
identificar com a "civilização" do morro e da periferia, mas têm por
ela um respeito basbaque e reverencial. Lutam para preservá-la da nefasta
influência da cultura central, esta nossa – vocês sabem, corroída pelo
materialismo, pelo capitalismo e por um moralismo de fachada.
Que coisa formidável! Estamos diante da defesa de uma nova forma de
apartheid, um dos refúgios do "pensamento" da esquerda contemporânea.
Se a tentativa de ver a "cultura da periferia" como um sistema com
valores próprios é só coisa de gente de miolo mole, uma banalidade, essa visão
"preservacionista" da civilização da miséria pode assumir uma face
cruel quando o assunto é, por exemplo, segurança pública. A polícia, segundo os
antropólogos da maldade, estaria proibida de subir o morro sem o prévio
consentimento da "comunidade", ou isso caracterizaria uma
"invasão". A disposição de enfrentar o crime, que seqüestra as áreas
pobres das cidades, é encarada como um ato de guerra, uma hostilidade a um país
estrangeiro. E os mortos nos confrontos – exceção feita aos policiais, os
"soldados invasores" – serão sempre vítimas inocentes do país agressor.
Lévi-Strauss poderia ensinar a essa gente que os costumes e hábitos de
superfície das sociedades – e, pois, também dos morros e das periferias – são
manifestações de estruturas de poder. Parecem-me indecentes os protestos de
artistas contra a ação da polícia no Rio em contraste com o seu silêncio então
cúmplice diante do fato de que os soldados do tráfico matam livre e impunemente
nas favelas. A estupidez reacionária desses progressistas chega ao ponto de
considerar que isso é coisa "lá deles", da "outra cultura",
"matéria da autodeterminação dos povos". Será que devemos reagir ao
assassinato dos nossos pobres com o mesmo distanciamento antropológico com que
reagimos ao infanticídio entre os ianomâmis?É improvável que Lévi-Strauss retorne ao Brasil, repetindo a façanha de 1934, quando veio dar aula na Universidade de São Paulo. Agora com 99 anos, completados neste 28 de novembro, é compreensível que tenha outras prioridades. Se o fizesse, talvez aproveitasse para adensar ainda mais a sua obra-marco, Antropologia Estrutural, ou, então, entre a melancolia e o escárnio, perceberia que fez muito bem em esculhambar o país em Tristes Trópicos, obra de 1955 com apontamentos sobre comunidades indígenas brasileiras e notas sobre a nossa cultura urbana. Sobrou até para os universitários, como não? Nos anos 30, eles demonstravam certo desprezo pelos livros de referência, preferindo os resumos. Sua curiosidade intelectual se igualava a uma inquietação gastronômica, e o que parecia inteligência era só disputa por prestígio e vanglória...
Se voltasse, o quase centenário estudioso teria a chance de conhecer,
então, esse novo saber. Por enquanto, ele está mais bem adaptado ao clima e à
geografia do Rio, mas floresce também em São Paulo, uma cidade mais vetusta,
razão por que os antropólogos da maldade, por aqui, costumam se esconder dentro
de batinas – ainda que meramente simbólicas – e se entregam a folias físicas e
metafísicas com seus "correrias" de estimação. Quando Lévi-Strauss
conheceu os índios bororos e nhambiquaras (os de verdade), sabia estar lidando
com civilizações que estavam em outro estágio do domínio da natureza, mesmo
para os padrões do Brasil, que já lhe pareceu, à sua maneira, tão primitivo,
com suas cidades que iam do nascimento à decadência sem conhecer o apogeu.
Ele jamais demonstrou qualquer simpatia pelos grupos que estudou.
Constituíam o seu material de trabalho. Bastava-lhe identificar as estruturas,
o conjunto de relações, que fazem com que as sociedades sejam o que são – à sua
maneira, de fato, cada uma delas encerra um mundo completo e dinâmico. Assim, é
perfeitamente possível supor que a cultura ianomâmi seja eficiente para... um
ianomâmi. E só outro indivíduo do mesmo grupo é capaz de propor questões
pertinentes que mudem a sua história. Veja como sou multiculturalista hoje em
dia. Mas, confesso, no tempo de padre Anchieta, meu negócio era catequizar a
bugrada.
Para os antropólogos da maldade, os morros e as periferias são
civilizações independentes, com estruturas simbólicas definidas pelos
indivíduos das tribos, e a postura progressista de um estudioso implica
deixá-los entregues à sua própria dinâmica, à sua cultura, a seus valores. Mais
do que isso: "eles" teriam algo a nos ensinar, assim como se supõe,
ainda hoje, que os silvícolas – veja como sou antigo – podem nos abrir as
portas da percepção para a generosidade, a convivência pacífica com a natureza,
a igualdade, o associativismo... Poucos se dão conta de que ser índio pode ser
chato, difícil e cruel. O Brasil adotou o "bom selvagem" de Rousseau
(1712-1778) – o "suíço, castelão e vagabundo", como o chamou o poeta
português Fernando Pessoa –, mas não deu a menor bola para as ironias do livro Cândido,
de Voltaire (1694-1778), este, sim, um francês legítimo, que fez pouco caso
da idéia de um homem em harmonia com a natureza.A periferia e o morro não são o centro. Continuarão a ser o morro e a periferia, e seus "valores" particulares não são senão a manifestação de uma utopia regressiva de basbaques ideológicos que imaginam converter um dia a linguagem da violência em resistência política. Aquela gente não é o "outro". Aquela gente somos nós, só que "sem fé, sem lei e sem rei": sem esperança, sem estado e sem governo.
Mas você sabem: eu sou muito reacionário. Progressistas são os
antropólogos da maldade, desbravadores das veredas que levam à terra dos
mortos.