11 de abr. de 2006

Odete Roitman, Maria de Fátima, Laura Prudente, Nazareth e Suzane

O que se viu no Fantástico foi o choque entre atores stanislavskianos de quinta categoria e brechtianos interessados em provar que era tudo representação. A novidade, então, talvez para a própria equipe do Fantástico, é que ela também representava.
Por Reinaldo Azevedo no Primeira Leitura

Farei um texto em que, tenho certeza, serei voz quase isolada. É do jogo. Às vezes, corintiano, estou com a maioria. O mais comum é ficar entre poucos. Alguns acham que é por exibicionismo. Se for, é uma doença que só pode fazer mal a mim mesmo. É bom estar com a maioria se você não se sente moralmente obrigado a estar em outro lugar. Eu não sei — o direito brasileiro deve saber — o que Suzane von Richthofen, que participou do assassinato dos pais, fazia fora da cadeia. A lei lhe facultava que, tendo feito o que fez, vivesse como eu e você, leitor amigo (ou até melhor). Esperava julgamento.

Não houve uma só circunstância que atenuasse seu ato brutal. Mas estava na rua. Alguns poetastros do direito brasileiro acham um absurdo que a pena seja um castigo. Eles querem “ressocializar” o preso. Pode ser esse o núcleo humanista da pena. Mas, à sociedade, o que interessa é reprimir o crime e coibir a besta que há em nós. O que evita a barbárie é a certeza da punição. E o que a açula é a impunidade. Simples assim. E isso não implica que se ignorem nem digo “os direitos”, mas as condições humanamente aceitáveis do recluso. A desgraça é que o Estado brasileiro não consegue controlar os presídios. Só serve para perseguir caseiros incômodos.

Por mim, Suzane passaria 30 anos na cadeia refletindo sobre seus atos. Eu não dou a menor bola para a sua ressocialização. Os assassinos que se danem. Não têm de estar entre nós. Eu não dormiria, com a porta do quarto aberta, numa casa em que ela morasse. Duvido que o juiz que a soltou fizesse a mesma coisa. Ou os que respondem pela lei que lhe permitiu deixar a prisão. Até aqui, creio, há uma razoável maioria comigo. Agora começarei a me distanciar.

Achei lamentável a “entrevista-reportagem” do Fantástico.

No Estado de Direito, caseiros inocentes ou culpados — ATENÇÃO: INOCENTES OU CULPADOS — só podem ter seu sigilo bancário quebrado com ordem judicial. No Estado de Direito, um advogado, por mais canalha e vigarista que seja (que, então, sua canalhice e vigarice sejam punidas quando houver oportunidade), tem o direito de passar instruções em sigilo a seus clientes. A desmontagem da farsa, com auxílio de microfones, não me parece eticamente aceitável. Sem contar que, no caso da reportagem do Fantástico, era desnecessária. A uma farsa se somou, então, o roteiro de uma novela, em que a lourinha má era, finalmente, desmascarada: Laura Prudente da Costa (Cláudia Abreu) tomava, enfim, uma surra de Maria Clara Diniz (Malu Mader).

Os advogados da garota, um deles apresentado como tutor, são, sem dúvida, patéticos; Suzane não passaria num teste para Malhação (mas também não está assim tão longe do desempenho médio...); toda a sua mímica do arrependimento compungido escorregava na falsidade; as pantufinhas infantis, o Mickey na camiseta... O conjunto gritava: “Olhem a menina desprotegida, vítima de facínoras pobretões e aproveitadores”. O parricídio e o matricídio estão um pouco além da tolerância média mesmo de uma sociedade como a brasileira, em que a ética coletiva é das mais lassas e em que os indivíduos nunca são convidados a investigar a moral dos próprios atos. Tudo se mostrava escancaradamente inútil. A catarse, no fim das contas, era desnecessária.

Não deixa de ser um sintoma de dias pouco salubres que uma assassina dos próprios pais seja oferecida em holocausto para purgar as maldades do mundo quando um criminalista, investido das funções de ministro da Justiça, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, está em palpos de aranha. Quando menos, ele silenciou sobre uma operação que constituía não um crime de indivíduos contra indivíduos, mas um crime do Estado contra um cidadão. Márcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci ou Luiz Inácio Lula da Silva resistiriam a microfones na lapela ou a uma conversa pessoal ouvida por terceiros?

Esse tipo de “investigação” e de “truque” para apontar as contradições de criminosos ou suspeitos, quero crer, têm de ser privativos dos mesmos entes públicos que detêm o monopólio do uso da violência — no caso, para assegurar a lei e a Constituição. O que se viu no Fantástico foi o choque entre atores stanislavskianos de quinta categoria e brechtianos interessados em provar que era tudo representação. A novidade, então, talvez para a própria equipe do Fantástico, é que ela também representava.

Suzane é assassina confessa, e nem isso tira dela o direito de se defender. A farsa que seus advogados montaram, como se viu, não era do interesse só da criminosa (aliás, o tiro saiu pela culatra), mas também da emissora. Ela queria piedade. O Fantástico queria Ibope. Até um ponto da trajetória, tratava-se de um acordo. Ambos se uniam. Do outro lado, a opinião pública.

Não é a primeira vez que isso se dá. Lembro do episódio envolvendo Clóvis Sahione, advogado de uma máfia de fiscais do INSS, no Rio. Ele foi flagrado pelo Jornal Nacional recomendando a um deles, Carlos Eduardo Pereira Ramos, que fizesse uma letra diferente na assinatura de um documento porque queria fazer dessa burla uma peça de sua defesa — acho que era por isso. Ora, que a Justiça não acatasse a safadeza. O que censurei à época foi o uso de uma câmera e de microfones para denunciar a sua instrução. Notem bem: aceito debater e acho “debatível” (se me permitem o neologismo) se há pessoas que, dada a natureza do seu crime, devem ou não ter direito à defesa e, portanto, a um advogado. Até que as regras vigentes forem as que estão aí, os dois episódios contribuíram muito para a sociedade do espetáculo e nada para a do direito.

Quantos de nós, jornalistas, aceitaríamos microfones ou câmeras secretas para descobrir, afinal, quem passou à revista Época o extrato da conta de Francenildo? Um jornalista tem mais direito ao sigilo da fonte, mesmo quando ele esconde um crime, do que um advogado na relação com o seu cliente, ainda que ele seja um escroque? Não são bandidos, muitas vezes, os que passam informações a jornalistas? Não era um criminoso aquele que passou o extrato do caseiro à revista? Nessas horas, costuma-se alegar o chamado “interesse público”.

Aceito o critério: não vejo nada que possa interessar mais ao público do que manter as regras do Estado de Direito, que inclui a liberdade de informar, e não o contrário. Esta está contida naquele, e não aquele nesta. Essa minha prosa nada tem a ver com a cascata do sr. Luiz Gushiken quando defendia um Conselho Federal de Jornalismo — de fato, o PT queria um órgão de censura. Ele argumentava que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Usava uma obviedade para defender uma causa ruim. Não estou dizendo que o Fantástico deveria ter sido censurado. Eu é que o estou censurando com a minha opinião, sempre contestável. Nada mais. A questão não é de regulação, mas de auto-regulação.

E tem mais: não estou inferindo que o Fantástico usou de má-fé. Acho que foi um momento de mau pensamento. Um momento de confusão entre o show e o jornalismo, o show e a vida. O show da nossa vidinha besta se degradou um pouco.

Os advogados que condenaram a conduta dos colegas de profissão no caso Suzane, a começar do presidente da OAB-SP, Roberto Busato, lamento dizer, se deixaram intimidar pela mídia e pelo clamor público. Que condenassem o teatro armado por seus colegas, vá lá. Que dissessem que aquele não era o melhor modo de defender uma cliente, ok. Mas não lhes cabia ceder àquele triste espetáculo.

Vivemos tempos um pouco brutos, quase sempre estúpidos. Primeiro absurdo: Suzane estava fora da cadeia. Segundo absurdo: a entrevista armada por seus advogados. Terceiro absurdo: a novelização da assassina (Nazareth e sua tesoura...). Quarto absurdo: ter sido decretada a sua prisão horas depois de a entrevista ter ido ao ar.

Caso se despreze o motivo essencial por que ela nunca deveria ter deixado a cadeia (matou duas pessoas), os motivos alegados para a volta à prisão são patéticos: representaria risco ao irmão (antes do Fantástico era diferente?) e estaria se preparando para fugir. Entendi: matar duas pessoas pode não ser motivo o bastante para ficar trancafiado, mas ai da assassina se for uma atriz desastrada! Olhem aqui: acho que essa moça está no lugar certo. E seria conveniente que lá estivesse pelos motivos que ela deu, não por aqueles que tiveram de ser pretextados para saciar a nossa sede canibal de justiça.

Pois bem, dito isso, volto ao ponto. Vimos, na verdade, uma guerra de narrativas e de roteiros. Havia a “produção” dos advogados e havia a “produção” do Fantástico. Venceram os profissionais, como se viu. Depois de Odete Roitman, de Maria de Fátima, de Laura Prudente da Costa, de Nazareth, chegou a vez de Suzane von Richthofen. A exemplo das outras, sua punição também é merecida, claro. Mas o direito, acho eu, dado o conjunto da obra, se degradou um pouco mais. Como disse certo delegado, “Pelo amor de Deus, estamos no Brasil”.

Márcio Thomaz Bastos não o deixa mentir. E nem precisa de microfones ou câmeras secretas.

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