28 de fev. de 2008

Quanto Vale o Blastocisto?





Por Rodrigo Constantino

"Mesmo o homem supersticioso tem direitos inalienáveis. Ele tem o direito de defender suas imbecilidades tanto quanto quiser. Mas certamente não tem direito de exigir que elas sejam tratadas como sagradas." (H. L. Mencken)

O debate sobre as pesquisas com células-tronco ganhou força, pois o Supremo Tribunal está para julgar a sua proibição ou não no Brasil. Os avanços científicos obtidos com estas pesquisas podem significar a cura de inúmeras doenças, salvando ou melhorando a vida de milhões de seres humanos. Praticamente todos aqueles que se opõem a estas pesquisas o fazem por motivos religiosos. Ainda que vários crentes tentem conciliar religião e ciência, o fato é que a primeira sempre esteve criando obstáculos para a segunda. Quando um avanço científico esbarra num dogma religioso, é este que deve prevalecer, segundo os crentes. A cruzada contra os avanços científicos com estas pesquisas em embriões garante uma sensação de nobreza a seus adeptos, que buscam o monopólio moral da preocupação com a vida. A questão que surge é: qual vida?

Sam Harris escreve: "Os embriões humanos que são destruídos nas pesquisas com células-tronco não têm cérebro, nem sequer neurônios. Assim, não há razão para acreditar que eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento com a sua destruição, de maneira alguma. Nesse contexto, vale lembrar que, quando ocorre a morte cerebral, atualmente julgamos aceitável extrair os órgãos da pessoa (desde que ela os tenha doado para esse fim) e enterrá-la. [...] A verdade moral aqui é óbvia: qualquer pessoa que creia que os interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre os interesses de uma criança com uma lesão na espinha dorsal está com seu senso moral cegado pela metafísica religiosa. O vínculo entre a religião e a ‘moral’ – tão proclamado e tão poucas vezes demonstrado – fica aqui totalmente desmascarado, tal como acontece sempre que o dogma religioso prevalece sobre o raciocínio moral e a compaixão genuína".

Parece evidente que esses religiosos não estão tão preocupados assim com a vida humana. O sofrimento desnecessário de milhões de seres humanos não os sensibiliza tanto quanto a vida de um ovo sem qualquer característica atual que o faça ser considerado realmente um ser humano. O argumento que fala do potencial das células não leva a nada, pois uma potência não é uma atualidade, assim como sementes não são ainda uma floresta. Por trás da cruzada religiosa contra as pesquisas está o conceito humano de alma. Mas os religiosos precisam antes explicar algumas coisas importantes. Por exemplo: nesta fase embrionária inicial, o ovo pode se dividir naturalmente. O que ocorre então? A alma também se divide? O The Guf produz mais uma alma em caráter de urgência? Se ocorrer o oposto, a fusão de dois ovos, as almas praticam uma fusão também? Se as pessoas desejam barrar importantes pesquisas científicas em pleno século XXI, será preciso mais do que apelos dogmáticos que usam um conceito humano, demasiado humano, como alma.

Diante da vida de um blastocisto num tubo de ensaio e a vida e a dor de milhões de seres humanos vivos, incluindo crianças, não parece restar muita dúvida do que escolher do ponto de vista ético. Mas os religiosos se mostram intransigentes, pois assumem que o blastocisto já é uma vida humana, e não aceitam o ponto de vista utilitário, de que o bem maior pode justificar alguns sacrifícios individuais. Concordo com a segunda parte, pois os fins não justificam os meios. Mas discordo quanto à vida humana de um blastocisto. E lembro apenas que, para manter a coerência e não cair em hipocrisia, esses religiosos não podem abrir nenhuma exceção. Ou seja, no caso de uma gravidez com risco de vida para a mãe, o aborto deve ser condenado por eles, assim como no caso de um estupro ou feto anencéfalo. Nenhum aborto artificial pode ser defendido por estes religiosos, em hipótese alguma, mesmo que abortos naturais sejam algo extremamente comum (Deus é o maior abortista de todos, sabe-se lá os motivos). Mas quando vamos a tal extremo, é impossível não questionar novamente qual vida essa gente defende. O feto de um centímetro, sem cérebro ou sensação, vale mais que a vida de uma mulher estuprada?

Quando lembramos que o sofrimento humano é visto como nobre por eles, o caminho da salvação, e que a cruz, que vem de tortura (crucificare), é o grande símbolo que admiram, tudo parece mais claro. Não é a vida humana que realmente importa para esses crentes, tampouco uma vida humana feliz. Para eles, viver é sinônimo de sofrer. Logo, o que buscam mesmo é uma sensação de superioridade moral, obtida através da cruzada que empreendem contra os demais. As cruzadas costumam valer mais pela sensação que desperta nos seus membros do que pelos seus resultados concretos. Um bom exemplo é o de madre Teresa de Calcutá. Sam Harris diz: "A compaixão de madre Teresa estava muito mal calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra". Os conservadores religiosos aceitam as perdas acidentais de crianças inocentes na guerra do Iraque, que defendem. São baixas circunstanciais, justificadas por um objetivo maior. Mas não admitem qualquer contemporização quando se trata do blastocisto, cuja vida colocam acima da vida de milhões de crianças.

Se fosse por estes crentes, a ciência estaria num estágio bem menos avançado, e a vida humana seria bem mais dura. Talvez seja isso mesmo que eles colocam como meta. Ajoelhar no milho ou usar o cilício na perna são atos dos mais nobres para eles! Mas não vivemos mais nos tempos da Inquisição, e aqueles que não compartilham desses dogmas, são livres para questionar os reais motivadores dessa cruzada. Que ética é essa que ignora tanto sofrimento humano para salvar um blastocisto? Por mais que eu tente, não consigo entender ou aceitar tal ética, ou falta de ética. Os religiosos falam uma língua própria, compreensível somente para outros religiosos, que temem o "homem invisível", o sofrimento eterno num inferno e acreditam em alma. Para aqueles que estão mais preocupados com esta vida mundana, a única certa, e com os seres humanos vivos, este discurso não faz sentido algum. Se aquilo que buscamos é uma vida feliz, o uso de células-tronco em pesquisas científicas deve ser defendido como um meio bastante razoável para tentarmos melhorar a qualidade da vida humana. Agora, se o objetivo não é esse, mas sim valorizar a dor e o sofrimento como o leitmotiv da nossa existência "passageira" nesta vida "desprezível", então faz sentido colocar o blastocisto acima das crianças doentes. Mas faz ainda mais sentido estes que "pensam" assim procurarem ajuda psicológica com urgência!

Nenhum comentário: