26 de fev. de 2006

O drama humano do emprego sem futuro

José de Souza Martins, caderno Aliás, O Estado de S. Paulo (26/02/06)

Os nossos janeiros e fevereiros são sempre anunciadores de taxas maiores de desemprego. Mas somos logo acalmados pelas análises que nos dizem que é assim mesmo. Há maior desemprego agora porque os excepcionalmente contratados em dezembro, devido ao movimento comercial maior do período natalino, estão sendo demitidos. Portanto, não nos alarmemos: estamos voltando à normalidade da anomalia do desemprego duradouro.

Analisar o desemprego é complicado. Os artifícios conceituais ajudam a pôr um pouco de ordem no entendimento que se tem do que para o desempregado é um drama, é muito mais do que um jogo de recursos explicativos. Sejamos otimistas, porém: o desemprego deste janeiro é melhor do que o desemprego de janeiro de 2005: caiu de 10,2% para 9,2%.

O desemprego, pelos níveis crescentes de sua duração, deixa de ser uma situação ocasional, rara e transitória e passa a ser uma situação duradoura e reiterada. Dados do Dieese mostram que em São Paulo o tempo médio de procura de emprego, em relação aos dois sexos, passou de 8 meses, em 1998, para 13 meses, em 2004, e assim se manteve ao longo de 2005. De modo geral, é esse o cenário em várias regiões do Brasil. O desemprego atual é expressão de uma ocupação rotativa dos trabalhadores, que acaba atenuando a sua capacidade de reivindicação social, especialmente salarial. Hoje o desemprego cíclico é parte da biografia prospectiva do trabalhador, desde o seu primeiro emprego. Ele se emprega já como candidato ao desemprego. Com o passar dos anos, a reinserção no trabalho vai ficando mais demorada, até o completo desalento.

No grupo de referência mais importante de cada um, que é a família, a maior probabilidade é a de que haverá nela permanentemente ao menos um desempregado. Os trabalhadores já estão mergulhados num universo de revigoramento de mecanismos de dependência material que afeta a organização da família, afeta autonomias pessoais e projetos de vida, distanciando as pessoas dos valores de classe média da sociedade de consumo sem propor alternativas. Não só o trabalhador que perde seu emprego é afetado e não só a sua família é alcançada pelos efeitos do desemprego. São afetados também os marcos de referência da inserção social e da ascensão social que dominavam o imaginário popular.

O desemprego desencadeia um refluxo nesse imaginário, uma redução nas expectativas sociais e econômicas, uma inversão da biografia imaginária do homem comum em relação ao que era essa biografia nos tempos do desenvolvimento industrial mais intenso e das intensas migrações em direção às grandes cidades, especialmente São Paulo e sua área metropolitana. Pode-se dizer que há uma sociabilidade do trabalho, gestada pelo trabalho. Esta é uma sociedade marcada pela valorização social do trabalho. Integrado é quem se orienta por ela, o que dá bem a medida do drama do desempregado e da angústia de quem vive na perspectiva de perder o emprego.

Boa parte da crise social e pessoal que resulta do desemprego decorre do fato de que o trabalho no mundo contemporâneo foi separado da casa: o lugar de viver é diferente do lugar de trabalhar. Criou-se um mundo social que depende do emprego para se reproduzir, criar identidades, definir referências. O desemprego restitui o desempregado ao predomínio da vida familiar e da casa, às relações de dependência que lhe são próprias. Mas, um mundo familiar que já não dispõe da autonomia econômica que fundava um modo de produzir próprio do âmbito doméstico. Um mundo familiar que está agora mutilado pela dependência em relação a uma fonte de sustentação e de regeneração econômica incerta e descontínua. O desemprego o restitui, portanto, a um mundo que é o da vida e do trabalho domésticos, um mundo que, em decorrência da expulsão do trabalho para fora da casa, se tornou feminino. Nesse sentido, o desemprego lança o homem desempregado num universo que ele próprio ajudou a estigmatizar e que agora o estigmatiza.

Dramas imensos e até tragédias volta e meia são noticiados pelos jornais envolvendo essas situações. A mulher que foi socializada para o trabalho e para a independência pessoal que dele decorre, no desemprego sofre dramas semelhantes, que se diferenciam quando muito pelo enredo. Seria até cruel supor que o problema se resolveria com uma educação que tornasse aceitável essa dialética do retorno cíclico ao mundo doméstico como um fato natural da modernidade.

O cenário pode estar se complicando nesta sociedade de valorações rígidas, se levarmos em conta que a entrada no mercado de trabalho vem sendo retardada tanto pela exigência de maior qualificação quanto pelo encolhimento geral das oportunidades de trabalho. O jovem corre o sério risco de entrar no rol dos preguiçosos e indolentes, sobretudo pela dependência material além da idade que a história passada fixou para isso. Concepções semelhantes cercam quem perde o emprego e demora para encontrar outro. O desempregado, sobretudo o homem, entra facilmente no universo das avaliações negativas, tratado como quem vive à custa de outrem, pior ainda se à custa da mulher.

Essas valorações mediatizam o conjunto das relações sociais e regulam, portanto, a própria construção dos relacionamentos, a admissão em certos ambientes e grupos, a circulação social, as possibilidades de integração e participação nas relações cotidianas. Há uma certa morte social no desemprego.

A mera ocupação substitutiva do emprego, como as do ciclo natalino e de outros ciclos de euforia econômica, pode se expressar na consciência do trabalhador nessa condição, que ele é quem faz apenas o supérfluo, irrelevante e desqualificado, no limiar da condição de descartável. Os trabalhadores rurais e urbanos falam muito em assegurar o “futuro para os filhos”, que não ter profissão não dá futuro, que tal trabalho não tem futuro. Portanto, só é legitimamente emprego o trabalho que, além de assegurar o presente, assegure o futuro e assegure o futuro da família e não de uma só pessoa.

José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo

Reproduzido do e-agora

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