4 de fev. de 2006

Herodes e os filhos do Brasil

por Alfredo Guarischi, médico - publicado no Diego Casagrande

Nestes últimos dias, muitas crianças, bebês seria o melhor termo, foram abandonadas. Em Belo Horizonte, dentro de um saco plástico, numa lagoa. A mãe (mãe?) declarava que havia dado (deu?) a filha a um homem de rua. Sofreria de depressão pós-parto? Esta hipótese foi logo afastada pelos especialistas. Até um ritual de magia começou a ser aventado. Outra criança foi deixada em frente a uma casa, logo junto ao portão de ferro. As casas são protegidas com grades, como prisões, pude ver pela televisão. No Sul, um córrego recebeu o corpo de um recém-nato, assassinado pela mãe cujo companheiro questionou ser o pai daquele pequeno brasileiro.

Crianças são roubadas em maternidade e Pedrinho, talvez o mais recente caso desvendado, retorna à vida com seus pais verdadeiros. Por anos - muitos - foi criado por uma mulher que a justiça condenou. Ele deve tê-la amado, assim como sua irmã, que também nasceu de outra mãe. Hoje, estes agora não irmãos, vão aprendendo - imagino - que têm uma família biológica, da qual foram subtraídos e vão descobrir novas emoções. A que custo emocional? Não posso imaginar, ao olhar para meus filhos.

Moro em Copacabana, na zona sul da Cidade Maravilhosa, e tenho milhões de vizinhos. Nossos bebês – os pobres - vivem sob marquises e suas mães os alimentam nas calçadas. Os irmãos maiores pedem esmolas. Não deixam de ser crianças abandonadas, longe das escolas de verdade - as que têm livros. Os sacos de plástico são seus cobertores. Aqui, ultimamente, não temos visto crianças deixadas em lagoas, córregos ou portas de casas. Talvez por que nossas lagoas fiquem distante, nossos córregos foram aterrados e não temos praticamente casas, pois vivemos em apartamentos. As grades, no entanto, vestem nossas portarias externas e internas.

Neste país tão desigual, alguns vereadores usam o dinheiro público para fingir que vão a congressos. Filmados e gravados desmentem. Os deputados federais se autoconvocam, mas a maioria não trabalha e recebe seus salários sem desconto. Nesta mesma época, um gari, que perdeu um dia na fila da pediatria para levar ao médico seu Joãozinho que chorava de febre, implorava para não ter o dia descontado. Alguns juizes são condenados por fraudes, mas não estão no presídio. Lá os traficantes ensinam a ladrões de galinha ilícitos novos, transformando-os em verdadeiros profissionais. O presidente, que nada sabia dos crimes praticados pelos seus companheiros, se prepara para pleitear sua reeleição. E nossas crianças - somos brasileiros e, portanto, são nossos bebês - continuam sem o presente, quanto mais sem um futuro.

Herodes, governador da Galiléia, decretou há mais de vinte séculos, a morte das crianças com menos de um ano, nascidas em Belém. Queria se defender da ameaça que representava o nascimento do Messias, o rei dos Judeus, profetizada pelos magos vindos do Oriente. Quem poderá deter o Herodes que se refugiou nesta terra onde canta o sabiá?

Antônio Gonçalves Dias em sua “Canção do Exílio”, escrita em 1840, pedia: “Que Deus não permita que eu morra, sem que eu volte para lá”. Eu peço que Deus não permita mais que nossas crianças morram, vítimas de doenças físicas e sociais. Estas últimas, em sua maioria, decorrem da impunidade dos crápulas e pústulas que desviam o dinheiro público. O dinheiro aplicado em programas assistencialistas funciona como antitérmicos: baixam a febre, mas não combatem a infecção. Não sobra dinheiro, mas sobra incompetência e politicagem. Faltam ações de estado. Faltam estadistas.

Socorro-me do Houaiss, rezando para que nossas crianças possam gorjear, brincando em praças, próximo a uma bela lagoa, que receba as águas do córrego, cercada por algumas palmeiras, sem grades e ao canto do sabiá.

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