23 de nov. de 2013

A Lucidez e Maestria de um comentário: Valentina de Botas, no post do Augusto Nunes de 03/10/2013

Os livro mais interessante estão emprestado

PUBLICADO EM 13 DE MAIO DE 2011

A frase reproduzida no título do post parece ter sido pinçada de alguma discurseira de Lula. Não foi. Mas os autores do livro didático “Por uma vida melhor”, chancelado pelo MEC, decerto se inspiraram na oratória indigente do Exterminador do Plural para a escolha de exemplos que ensinem aos alunos do curso fundamental que  o s no fim de qualquer palavra é tão dispensável quanto um apêndice supurado. O certo é falar errado, sustenta o papelório inverossímil.

A lição que convida ao extermínio da sinuosa consoante é um dos muitos momentos cafajestes dessa abjeta louvação da “norma popular da língua portuguesa”. Não é preciso obedecer à norma culta em concordâncias, aprendem os estudantes. Isso porque “o fato de haver a palavra os (plural) já indica que se trata de mais de um livro“. Assim, continuam os exemplos, merece nota 10 quem disser ou escrever “nós pega o peixe”. E só elitistas incorrigíveis conseguem espantar-se com a medonha variação: “Os menino pega os peixe”. Íntegra

O Comentário de  Valentina de Botas  ...  

Contemplemos o Brasil. Do que ele vai viver quando crescer? O Brasil empírico, o mesmo que patrocina o Brasil Maravilha e só assim é percebido pelo lulopetismo, a apoteótica vigarice que patrocina o analfabetismo como quem sustenta uma causa. O Brasil real cujo cotidiano, desde o triunfo da mediocridade, é sucessão de notícias ruins. Esta, do aumento do analfabetismo, deveria tornar cada brasileiro um manifestante, armado de cartolina e indignação, a ocupar todas as ruas do país que se desmancha. Mas quê! Eis a péssima notícia a respeito daquela já tão ruim: a pasmaceira quase unânime, o enfaro quase consensual, a indiferença quase geral, o silêncio quase total, a preguiça quase fatal. Uma tristeza.
    
Faço livros, querido colunista. Com paixão técnica, rigor maternal e amor profissional. Trabalho com os originais e sua massa de texto, checando remissões, batendo figuras, confirmando nomes e datas, padronizando termos, fazendo a revisão gramatical, de um lado; de outro, lido com o ego de autores e tradutores, discuto soluções que abrandem marcas de tradução, refaço trechos para desfazer ambiguidades involuntárias, reescrevo outros para liberar sentidos truncados e favorecer a fluidez da leitura, sempre respeitando autorias (e a tradução é uma autoria também), sempre para o bem do livro. Um tesão. De ambos os lados, a constatação desoladora: o analfabetismo já chegou aos livros.
    
Outro dia, um professor de Direito entregou os originais do livro em que aborda o “ânus” da prova; o espantoso equívoco se repete, sem que o culpado use uma única vez o termo correto. Um tradutor do inglês entendeu “criminosos convictos” onde havia “convicted criminals”, no melhor estilo inglês da Copa. Temo, a qualquer momento, flagrar um between para o imperativo do verbo entrar. Analfabetos ilustrados reúnem negligência e arrogância com total desenvoltura. Uma vergonha. Há ainda a dramática impermeabilidade ao uso correto do “por que” e da crase; o abuso de repetições que empobrecem tudo; redundâncias risíveis como “incluir dentro” e “é possível que possa”; o assustador uso anafórico de “o mesmo”; os modismos; grafias surpreendentes como “por tanto” para a conjunção e “de mais” para o advérbio; concordância verbal virou charada e o sujeito acaba oculto. Fora o resto. Um desconsolo.
    
Os fazedores de livros amamos fazê-los, o salário é um vexame, o que torna o trabalho uma devoção. Não gosto, mas sei viver com pouco. Pena que não dá pra pagar o aluguel assim, não é mesmo? Receio que a profissão tende a desaparecer na exata medida em que mais é necessária: quando comecei, passados mais de 20 anos, não havia agressões tão intensas e abundantes contra a gramática; hoje, quando a mediocridade vive sua apoteose também na língua, editoras e autores se valem cada vez menos de profissionais como eu. A contradição é só aparente: somos o insólito país onde autores analfabetos escrevem para leitores analfabetos.
   
Talvez em alguns anos, a Branca Nunes faça uma linda reportagem sobre a profissão que se extingue. Eu e meus colegas podemos nos virar e arranjar do que viver, mas e o país que não sabe ler nem escrever o que escreve e lê? Não sei, só sei que é dele que vive os patronos da ignorância meticulosamente tramada. Uma lástima. Um beijo.
    
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/os-livro-mais-interessante-estao-emprestado/

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