20 de mar. de 2008

Made in China: repressão

A China é um mito em crescimento chinês. Sinônimo de dinamismo e força, o gigante asiático tornou-se a fábrica do mundo com sua acelerada revolução industrial pós-moderna: a Inglaterra do século 18 de volta para o futuro do século 21.

Milhões e milhões deixam a zona rural chinesa e engrenam nas manufaturas globais. Trabalham sem parar em busca de salários magros que enchem os bolsos dos industriais chineses e estrangeiros.

Todos lucramos na operação China. Explorando sua farta mão-de-obra, vendendo nossas commodities ao seu imenso mercado, comprando importados baratos.

Justamente um país comunista tornou-se peça-chave do capitalismo global com sua bem organizada exploração do proletariado chinês, que segura a inflação no mundo. Suas reservas cambiais, já no trilhão de dólares, ainda financiam os EUA e resgatam seus bancos podres.

O mundo agradece a essa explosão de vigor, que nos impulsiona. Talvez seja isso que explique a tolerância com os abusos aos direitos humanos da ditadura comunista, que deveriam nos causar repulsa.

A revolta em curso no platô tibetano, pelas ruas de Lhasa e outros centros, e a dura repressão chinesa expõem, apesar da censura de ferro, a face escura do milagre chinês, um regime de partido único que não tolera dissensão.

O caso tibetano é comovente, caro a estrelas de Hollywood, intelectuais e humanistas em geral. O Dalai Lama esteve em São Paulo em 2006 e lotou o Ginásio do Ibirapuera com sua mensagem pacifista. Reencarnação do Buda da compaixão na tradição do budismo tibetano, ele já desistiu de obter a independência do jugo chinês e trabalha por mais autonomia aos tibetanos.

A China ocupa o Tibete desde 1950. O Dalai Lama fugiu ao exílio indiano em 1959 após sangrenta revolta ser reprimida pelos chineses.

Antes dos comunistas, a região era muito pobre, um regime de castas desigual e teocrata. Pequim investiu bilhões no Tibete, inaugurou no ano passado a "ferrovia mais alta do mundo", ligando o platô isolado às massas chinesas, e inundou as cidades tibetanas de chineses da etnia han, protegidos pelo regime e odiados pelos locais, que denunciam um genocídio cultural.

O Partido Comunista Chinês ainda advogou a si o direito de nomear os altos lamas, interferindo na sucessão do Dalai Lama, tentando dividir seus seguidores. Apesar de se dizer disposta ao diálogo, a China para alguns analistas na verdade ganha tempo até que o carismático Dalai Lama saia de cena e sua causa desidrate.

Talvez por isso a revolta desesperada dos tibetanos, que levou a China a reforçar ainda mais as duras restrições aos jornalistas estrangeiros e à internet: as transmissões da CNN e da BBC chegaram a ser interrompidas no país.

Os tibetanos querem aproveitar a proximidade das Olimpíadas para chamar a atenção global. Os Repórteres sem Fronteiras, a ONG que defende jornalistas, propôs um boicote à transmissão de abertura das Olimpíadas de Pequim, marcada para 8/8/8.

O cineasta Steven Spielberg já tinha abandonado sua ligação com os jogos em protesto contra o apoio chinês ao regime do Sudão, fornecedor de petróleo a Pequim e acusado de cumplicidade na matança de milhares de pessoas em Darfur. Sentindo o golpe, pouco depois um diplomata chinês apareceu em Cartum pedindo mais atenção do governo sudanês aos conflitos na região.

Assim como outras potências no passado, a China quer usar as Olimpíadas para projetar poder global. Por isso, está vulnerável. Não quer alimentar atritos, pode ceder a pressões. Este é o raciocínio da revolta tibetana. Mas o pavor de Pequim a agitações separatistas predomina.

Projeções de alguns economistas indicam que a China passará os EUA como maior economia do mundo nos anos 2020. Essa emergência trará abalos sísmicos à ordem mundial. Estrategistas americanos sugerem que a melhor forma de acomodação com o gigante chinês seja trazê-lo à moldura institucional criada pelo Ocidente desde o pós-guerra: FMI, ONU, Banco Mundial, OMC.

Roosevelt já pensava assim quando brigou com Churchill para que os chineses fossem membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Sabia do destino manifesto da China.

Para onde for a China irá ao menos o entorno asiático. Sua política precisa caminhar atrás de sua economia, para a abertura. É um caminho difícil.

Em 1997, entrevistei em São Paulo Samdhong Rinpoche, então presidente do Parlamento do governo do Tibete no exílio. "Não é correto dizer que a China está ficando mais forte", errou ele há dez anos. "Na verdade, a China está ficando mais fraca. O crescimento econômico chinês é artificial, baseado no uso de mão-de-obra quase escrava. O compromisso ideológico chinês está se perdendo. A economia de mercado e o regime político totalitário não podem conviver para sempre. Isso é uma grande contradição. O movimento pró-democracia está crescendo."

O movimento democrático não cresceu, mas a equação de Rinpoche pode trazer resultado via crescimento econômico. A massa urbana assalariada já exige mais direitos, a internet atinge 200 milhões de chineses, 700 milhões votam em eleições nos vilarejos rurais.

Todos ganharemos se a China seguir a trilha democrática. "Se a China se tornar uma democracia, o Tibete ganhará autonomia", disse Rinpoche em 1997.

Os tibetanos cansaram de esperar. Estão gritando ao mundo, desesperados, mas o barulho da locomotiva chinesa (e de seus tanques) os abafa.

Sérgio Malbergier é editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo. Foi editor do caderno Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: smalberg@uol.com.br

Nenhum comentário: