23 de jan. de 2008

Crenças Místicas


“Uma teoria está sujeita ao tribunal da razão somente.” (Mises)

O povo brasileiro é um povo bastante inclinado a aceitar passivamente crenças totalmente místicas, das mais absurdas possíveis. Concebo que esta é uma característica universal, mas o caso brasileiro chama a atenção pelo seu grau de crendice. Possivelmente, entre os principais fatores que explicam isso estão a miséria e a ignorância, ainda que não os únicos. Quanto menos instruído for o povo, e quanto maiores forem suas demandas básicas não atendidas, mais fértil é o terreno para a propagação do vírus do misticismo. O obscurantismo em que a Idade Média estava em boa parte mergulhada é evidência disso. As crenças irracionais se alastram na escuridão, alimentando-se do desespero de suas vítimas. As duas paixões humanas que mais contribuem para este caminho são o medo e a esperança. A manipulação desses sentimentos por oportunistas de plantão sempre foi um prato cheio para regimes autoritários e de exploração. O medo da morte e da punição eterna sempre fez muitas vítimas e prisioneiros. A esperança de ser salvo e viver para sempre no paraíso idem. Em certo sentido, podemos afirmar que o Iluminismo ainda não nos deu o ar de sua graça.

Os exemplos que podem ser citados são quase infinitos. Basta andar pelas ruas para verificar a quantidade de gente que ainda crê em macumba, para começo de conversa. A astrologia, em sua forma mais embusteira, ainda faz muitos adeptos por aqui. Não são poucos, mesmo entre as classes mais abastadas, que tomam os patéticos horóscopos como guias de suas vidas. Em um estágio um pouco superior estão vários que encaram o mapa astral como uma ciência séria. Milhares de pessoas visitam as cartomantes ou jogam búzios para “prever” o futuro. Muitos conseguem levar a sério a “materialização” de espíritos divulgada por Chico Xavier. Todo ano milhões sujam os mares na virada do ano com oferendas para Iemanjá. As igrejas mais impostoras de todas, num ambiente bem concorrido, conquistam novas vítimas para seus rebanhos a cada dia, não obstante as constantes provas de safadeza dos seus líderes. A homeopatia, com seu processo de “dinamização”, é encarada como medicina verdadeira, ainda que as substâncias sejam completamente diluídas no “remédio”. Vários adotam os cristais para “energizar” suas vidas. As crenças importadas do oriente viram moda, provavelmente pelo charme do desconhecido e esotérico. Quanto maior o ocultismo, mais cool é pertencer à seita. A ignorância é enaltecida, e os questionamentos são coisa de “chatos”. O lance é não entender direito mesmo. Não é preciso pensar, apenas “sentir”. O povo brasileiro coloca realmente as emoções acima da razão como instrumento cognitivo. Não poderia ter outro resultado.

A arte de questionar, exigindo argumentos embasados, respeitando a lógica e a razão, demandando evidências empíricas e científicas, não é muito comum por aqui. O ceticismo não faz exatamente parte de nossa cultura. Se a estátua de uma santa, por exemplo, aparece com “sangue” nos olhos, como se lágrimas fossem, logo uma legião de crentes jura se tratar de um milagre. É um desejo incrível de crer, solapando a capacidade de questionar. E se for um caso simples de charlatanice, fácil de fazer? Não vem ao caso. Alguns casos isolados de cura após a ingestão de uma pílula “santa” são divulgados, e logo há uma fila enorme para ser agraciada pelo milagre. Por que entender o efeito placebo? Imagens aparecem nas janelas de vidro, e logo a massa dos desesperados brada sobre um novo milagre. Para quê perguntar que tipo de fenômeno químico pode causar estas manchas? Por que lembrar que a mente humana adora buscar padrões no caos, como a brincadeira comum de enxergar figuras nas nuvens?

Nada disso. O acaso, como os seguidores espíritas de Alan Kardec adoram repetir, não existe. Tudo tem que ter um motivo, uma ligação causal. O determinismo conquista muitos seguidores, pois retira a responsabilidade. O livre-arbítrio assusta, e por isso mesmo afasta muitos da busca pela liberdade. É mais fácil buscar consolo ou conforto em uma explicação exógena qualquer. Se algo vai mal, é o destino. Se eu sou de um jeito que não me agrada, não posso fazer nada para mudar. Assim Deus quis, ou é meu “karma”. Se um relacionamento deu errado, é porque tinha que dar. Se eu joguei fora as muletas, mas não voltei a andar direito, é porque faltou fé apenas. Se um filho fica muito doente, é porque este é o desígnio de Deus. Se morrer um ente querido, é porque estava em sua hora. E por aí vai. A lista de fugas não acaba nunca. Encarar a realidade é tarefa árdua, e a maioria opta pela saída mais fácil, ainda que falsa.

Muitas pessoas acham que não devemos debater religião. Eu não concordo, e nunca aceitei direito esta blindagem do tema. Há uma capa de proteção que torna as religiões, por mais irracionais que sejam, inatacáveis. Quem condena o misticismo tolo é tachado de insensível. Eu não me importaria tanto com as fugas alheias, se elas não tivessem conseqüências muitas vezes nefastas para minha própria vida. Mas a verdade é que as crenças dos vizinhos exercem influência no meu cotidiano, até porque eles votam, ou porque desejam impor seus dogmas aos “hereges”. Não se satisfazem em crer isoladamente nas sandices, mas precisam de novos colegas, pois tentam compensar a falta de qualidade com a quantidade. Quando se trata de uma fuga boba em busca de consolo, quando como milhões rezam para santos pedindo auxílio, não vejo problemas maiores. Posso lamentar pela fraqueza em si, que tantas vezes escraviza o indivíduo. Mas não seria nada tão grave assim. O problema é que esse ambiente de misticismo exacerbado transborda para o restante, inclusive para a política. A crença num messias salvador, no Deus Estado, nas promessas estúpidas dos candidatos, tudo isso concentra poder e reduz, portanto, a liberdade individual. Uma coisa está atrelada a outra.

Falta justamente um modus operandi correto, de questionar mais, de procurar entender as coisas sob a lente da razão e aceitar suas limitações, sem a necessidade do misticismo como substituto para a nossa ignorância. Tudo isso acaba tendo como causa o mesmo fenômeno, qual seja, o desprezo pela razão e a tendência a adorar e idolatrar soluções mágicas e confortantes. Se a escolha será entre a Igreja Universal ou o socialismo, não importa muito. Pode ser inclusive uma mistura de cristianismo com socialismo, como na “Teologia da Libertação”. Trata-se do mesmo tipo de fuga, de uma crença mística obtida através das emoções. O profeta disse, só pode ser verdade. Não vem ao caso questionar, bastando o apelo à autoridade. O importante é ter fé. Os crentes “sabem” A Verdade, pois ela foi “revelada”. Está no livro “sagrado”, a Bíblia ou o Manifesto Comunista. O rebanho é intolerante com os “dissidentes”, pois como a crença é dogmática, e não proveniente de reflexão profunda, faz-se necessário calar os que apontam as incoerências e contradições. O caso entre religiões e questionamentos nunca foi de muito amor. Muitas vezes acabou em fogueira.

Não é por acaso que o fanatismo religioso – e aqui incluo o comunismo ateu, uma ideologia com todas as características de seita dogmática – derramou rios de sangue durante a história da humanidade. O antídoto para essas crenças místicas, algumas mais perigosas e outras mais inofensivas, é aquilo que todas elas, no fundo, combateram: a razão. “Si tibi vis omnia subjicere, te subjice rationi” (se queres submeter tudo a ti mesmo, submete-te primeiro à razão). Sêneca acertou na mosca ao dizer isso. E aquele que abdica desse instrumento, está aceitando a escravidão, pois delega a algo de fora o controle sobre sua vida, sem questionamento. É a cegueira voluntária. Por isso que o mesmo Sêneca afirmou ainda: “A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil”. Está na hora do povo brasileiro começar a questionar mais suas crenças. Passou da hora de absorver as principais lições iluministas. E por falar nisso, finalizo com o alerta de um dos grandes filhos do Iluminismo, um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos, Benjamin Franklin: “O jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão”.

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