3 de out. de 2006

Capital Intelectual - por Ralph J. Hofmann

Uma crônica de Cláudio de Moura e Castro no “Ponto de vista” da Veja e um comentário do Galvão Bueno no decorrer do jogo entre a Austrália e o Brasil me lembraram um assunto em que o Brasil, por se apegar a uma mentalidade cartorial e uma certa xenofobia muitas vezes deixou de progredir.

Ao comentar o jogo Galvão Bueno chamou atenção à excepcional, agradável e progressiva sociedade da Austrália, com uma enorme quantidade de nacionalidades diferentes que vieram a desenvolver o país.

O que Galvão Bueno não mencionou foi que grande parte desses que na década de cinqüenta do século XX eram chamados de “New Australians” veio ter ao país após 1945. Enquanto outros países faziam mil exigências para aceitar imigrantes europeus dos campos da UNRRA (United Nations Relief and Relocation Agency), os australianos andavam pelos campos procurando pessoas que desejassem enfrentar uma vida bastante difícil, num país onde quase tudo ainda estava por fazer.

Em 1968, após a “Primavera de Praga”, novamente a Austrália enviou pessoas a Viena, onde se acumulavam muitos dos egressos da antiga Checoslováquia, e dessa vez concentrou-se em fazer a triagem e recrutar pessoas com alta escolaridade, com famílias estáveis. A Qantas, empresa aérea da Austrália foi contratada para enviar um ou dois aviões “charter” semanais com colonos à Austrália. As pessoas recrutadas iam conforme uma “lista de compras” do governo de talentos que iam desde técnicos até Doutores. A absorção dessas pessoas na sociedade foi extremamente rápida. Naturalmente médicos e engenheiros civis tiveram de prestar exames, inclusive sobre as normas australianas de trabalho.

À época cheguei a questionar por que, o Brasil, que sofria uma fuga de cérebros qualificados não estaria copiando os australianos.

A explicação está parcialmente no artigo de Cláudio de Moura e Castro. No Brasil até inventor precisa de diploma. Nos meus primeiros anos na universidade em Porto Alegre conheci um físico nuclear formado no Rehovot em Israel. Era brasileiro. Aqui não podia lecionar em cursos de graduação ou sequer em escolas do ensino médio. Na falta de empregos para físicos passou a lecionar em cursinhos pré-vestibulares onde se tornou uma grande estrela. Mas para ensinar num colégio estadual teve de repetir todo o curso de física. Só que os professores não raro o chamavam para dar aula.

Nos anos setenta encontrei outra distorção semelhante. Dois jovens belgas, um engenheiro mecânico, o outro engenheiro eletrônico, numa época que nenhuma universidade brasileira havia formado sua primeira turma de engenheiros eletrônicos, foram trazidos ao país num programa de imigração incentivada, para trabalharem no setor de Pesquisa & Desenvolvimento de uma empresa nacional. Um ano depois a empresa decidiu encerrar seu programa de pesquisa. Despediu os jovens. Enamorados pelo país, envolvidos com meninas brasileiras, eles decidiram ficar aqui. Passaram a projetar equipamentos industriais sob encomenda para produção por terceiros, para depois de ter um certo volume de trabalho e renda, um após o outro se sujeitarem a voltar à universidade por um ano para obterem um diploma brasileiro Não conseguiram. Foram metodicamente e repetidamente multados pelo CREA. Lembro ainda que um dos dois belgas tinha atestados da Ferrari. Passara todas as férias da universidade trabalhando no desenvolvimento dos sistemas de telemetria que vieram a ser vitais na Fórmula 1. Quem examinou os currículos universitários deles, outro físico nuclear brasileiro desempregado, disse que o currículo deles era muito superior ao exigido de engenheiros brasileiros.

Na impossibilidade de trabalharem em engenharia reversa e desenvolvimento passaram a ser vendedores técnicos e depois montaram um apequena indústria. Podiam ser donos de indústria. Mas não podiam ser engenheiros. Nem mesmo para elaborar projetos a serem produzidos por indústrias com responsáveis técnicos próprios.

A Europa e os Estados Unidos estão cheios de engenheiros e arquitetos formados no Brasil, fora outras profissões. Basta mostrarem sua competência.

Agora temos no Brasil meio-médicos, meio-curandeiros cubanos, vacinas cubanas para vírus que não existem no Brasil. Isso pode.

Em 1945 os médicos que chegavam ao Brasil da Áustria, Hungria e Alemanha tiveram de trabalhar associados a um médico brasileiro por alguns anos, em lugares onde faltavam médicos e apenas depois prestar exames. Era um bom sistema. Aliás era o sistema na Inglaterra, Estados Unidos e na maioria dos países que recebiam imigrantes. E se justificava, pois não havia como verificar a legitimidade de diplomas de países que não raro haviam sido varridos do mapa.

Mas a verdade é que a Austrália obteve serviços de pessoas que, não apenas faltavam no país como teriam custado bilhões de dólares para educar. E isto inclui torneiros mecânicos, desenhistas e publicitários.

O Brasil não teve oportunidade de usar um tal atalho ao desenvolvimento. Se emparedou atrás de uma reserva de mercado.

Com autorização do Ralph J. Hofmann

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