23 de ago. de 2006

Cachorro de Palha - por Rodrigo Constantino

Com autorização do Rodrigo Constantino

Os humanos pensam que são seres livres, conscientes, quando na verdade são animais enganados.” (John Gray)

Em Cachorros de Palha, o professor da London School of Economics, John Gray, causa bastante polêmica ao afirmar que a técnica evolui, mas a ética humana não. Ele diz que a ciência pode ter aumentado o poder humano, mas também permitiu que o homem causasse maior destruição. O conhecimento, segundo o autor, não nos torna livres, e sim “nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura”. John Gray diz que trata-se de uma heresia moderna a crença de que o objetivo da vida é a ação, lembrando que para Platão, por exemplo, a contemplação era a mais elevada forma de atividade humana. O objetivo não era mudar o mundo, mas enxergá-lo corretamente. Apesar de podermos pescar uma ou outra mensagem interessante no livro, ele está repleto de contradições. Veremos algumas delas.

Para começo de conversa, há um tom bastante crítico sobre o conhecimento humano no decorrer do livro. Mas curiosamente, somente o conhecimento adquirido pelo autor possibilitou que a obra fosse concluída. Para condenarmos a razão, precisamos utilizá-la. E sobre o objetivo da vida ser apenas a contemplação, o autor precisa então nos explicar porque partiu para a ação de escrever um livro, já que sequer pretende tentar mudar o mundo. Isso para não entrar na seara de quanta coisa o homem teria deixado para trás se ainda estivesse apenas contemplando a natureza, desde Platão. De fato, o maior conhecimento humano não necessariamente altera a sua natureza, tampouco garante o fim das atrocidades cometidas por homens. Essa mensagem é boa no livro, principalmente quando lembramos que os genocídios cometidos pelos comunistas em pleno século XX foram supostamente calcados na razão humana. Mas a solução não é a ignorância. Pelo contrário, o próprio conhecimento humano já havia mostrado que as experiências comunistas seriam um completo fracasso. Mesmo com altos e baixos, me parece errado negar uma certa evolução não apenas no nosso conhecimento, mas no que isso representou de mudanças éticas, da barbárie para a civilização.

John Gray parte para uma visão bastante pessimista e escatológica no livro, defendendo as teses de Malthus e afirmando que o século XX poderá ser visto como um tempo de paz no futuro. Ele diz: “Se existe alguma coisa certa sobre este século, é esta: o poder conferido à ‘humanidade’ pelas novas tecnologias será usado para cometer crimes atrozes contra ela”. Cita, então, os gulags comunistas como prova do tamanho do estrago causado graças aos avanços tecnológicos. E conclui que “o progresso técnico deixa apenas um problema a resolver: a fraqueza moral da natureza humana”, problema que ele considera insolúvel. Jamais compartilhei de uma visão romântica do ser humano, como um “bom selvagem” corrompido pela sociedade, que é formada por homens mesmo. Mas também não creio que o progresso e o conhecimento não possam ir “controlando” melhor certas paixões perigosas. Se por um lado ainda corremos o risco que vem dos fanáticos muçulmanos, por outro lado uma boa parcela da humanidade está tendo cada vez mais acesso aos valores ocidentais ligados à liberdade individual. Ainda que justificado, um ataque militar que causa perdas de civis inocentes gera uma revolta enorme, forçando uma moderação por parte do governo em questão devido à pressão popular. Como ignorar um avanço nesse campo quando lembramos que, no passado, populações inteiras eram dizimadas nas guerras, as mulheres eram estupradas e as crianças mortas propositadamente? O Islã fanático com sua jihad ainda representa esse atraso, sem dúvida. Mas não podemos generalizar, tampouco ignorar o avanço relativo de outras civilizações.

A consciência humana e o livre-arbítrio também são questionados pelo autor, que dá uma grande ênfase ao poder da percepção subliminar. Sem dúvida, muito do que conhecemos não está disponível no nível da consciência, e usamos mecanismos automáticos diariamente para nossa sobrevivência. John Gray chega a afirmar que “temos acesso consciente a cerca de um milionésimo da informação que usamos diariamente para sobreviver”, concluindo que “não podemos ser os autores de nossos atos”. Mas o fato de boa parte do que conhecemos estar ocultado nas sombras da nossa mente não anula o enorme poder daquela parte a qual tomamos consciência e processamos à luz da razão. Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha, ainda que tal liberdade sofra o impacto de forças ocultas. Ou será que o livro todo de John Gray foi escrito por acaso, sem reflexão alguma e independente de sua consciência?

Em um capítulo sobre moral, John Gray abraça com vontade o relativismo exacerbado, chegando a falar que “as idéias de justiça são tão eternas quanto os chapéus da moda”. Está certo que nosso conhecimento sobre a justiça muda com o tempo, preferencialmente evoluindo. O que ontem era visto como justo – a escravidão, por exemplo – hoje pode ser visto corretamente como injusto. Isso não torna a moral algo totalmente relativo e flexível. Os dez mandamentos do Monte Sinai ainda hoje seriam vistos como corretos, e matar um inocente do nada sempre será um ato injusto, não importa a época. Mas John Gray vai ainda mais longe: “Não é apenas que a vida boa tenha muito pouco a ver com a ‘moralidade’; ela somente floresce por causa da ‘imoralidade’”. Gray gosta do modus vivendi taoísta, onde a vida boa significa viver sem esforço, de acordo com nossas naturezas. “Os animais selvagens sabem como viver; não precisam pensar nem escolher”. Entretanto, com todas as angústias que nosso conhecimento pode gerar, eu jamais aceitaria trocar de posição com uma hiena. Será que John Gray trocaria? Até mesmo para refletir sobre isso, é preciso usar a razão, aquele instrumento que justamente nos afasta tanto de uma simples hiena.

Existem algumas partes do livro com as quais concordo. Busquei focar meu texto naquelas onde discordo, por considerar que tais contradições retiram muito o valor que o livro poderia ter. Sempre que alguém vem atacar violentamente o poder da razão humana, usando para tanto a própria razão humana, já fico desconfiado. À certa altura, John Gray diz que “os humanos nos quais a consciência é altamente desenvolvida não têm como evitar se transformarem em atores”. Faço uma última pergunta então: a consciência do próprio John Gray é pouco desenvolvida ou seu livro todo não passa de uma atuação?

Nenhum comentário: