13 de mai. de 2016

A ordem sem progresso e a corrupção

José de Souza Martins, O Estado de S. Paulo (18/09/05)

Superado o embate esquerda-direita, o que se vê agora é o embate entre o Brasil moderno e o Brasil arcaico
O Brasil que ganhou visibilidade nos últimos meses e teve seu momento litúrgico mais importante na sessão de quarta-feira da Câmara dos Deputados, quando da cassação do deputado federal Roberto Jefferson, não é o Brasil da corrupção e do moralismo relutante. Tampouco é esse um embate entre direita e esquerda. Os angustiantes capítulos dessa novela nos falam de outro Brasil, que agoniza mas insiste. O embate é entre o arcaico e o moderno. Nos costumes antigos, o Brasil arcaico tem insistido em ficar. Também na vida política e na vida social. E ainda é forte entre nós a cultura da permanência, o arcaico sobrevivendo, demorando-se além de seu tempo. Na política não há especialistas na arte de bem morrer, o que é uma pena. No passado era malvista a resistência do moribundo a morrer quando chegava sua hora. Mas havia os que tratavam de convencê-lo a partir.
Sempre que se fala em corrupção não são poucos os que se surpreendem. Menos por sua ocorrência e muito mais pelo conceito estranho e negativo para coisa conhecida e aceita. A população sabe bem o que é o roubo e o abomina e pune, até mesmo com a cruel violência do linchamento. Mas corrupção já é outra coisa, dinheiro que os mandões desde os tempos do Império podiam aplicar em benefício dos desamparados, dos pobres e carentes. Não havia distinção, e em muitas partes continua não havendo, entre o público e o privado, conceitos provenientes de sociedades que tiveram outra história. A República se fez à custa da transigência em relação a esses e outros limites.
Quem ataca a corrupção acaba atacando os pilares da persistente política brasileira do clientelismo e do populismo, os fundamentos da chamada dominação patrimonial. Mesmo em nossas grandes e supostamente modernas cidades, esse é o meio pelo qual milhões de brasileiros têm acesso a algum benefício público. Mesmo para ter direitos assegurados em lei, milhões de brasileiros dependem do patrocínio e da proteção de algum pai da pátria e sua rede de dependentes e serviçais, até mesmo no supostamente burocrático e neutro guichê de repartição pública. Em parte, o Congresso Nacional é a instituição que reflete esse Brasil real.
O Brasil arcaico não vê corrupção em diferentes modos pelos quais se dá a transferência de dinheiro do público para o particular e do particular para o público em nome de interesses e conveniências que não podem ser reconhecidos por escrito. A lei, que expressa os anseios do progresso, fica postiça em face dos anseios do costume e da ordem, do chamado Brasil profundo, que não está apenas lá longe nos sertões, mas está também aqui mesmo no substrato da nossa consciência coletiva e de nossas tradições mais antigas, na nossa tolerância e na nossa indiferença. Estamos acostumados. O embate entre a ordem e o progresso é antigo entre nós. Não por acaso foi colocado pelos republicanos na Bandeira Nacional como lema da conciliação e de todos, anunciando o progresso lento, regulado pela ordem e pela tradição. Somos prisioneiros desse impasse e nada indica que ele será superado no nosso tempo.
Os cientistas sociais previram que o Brasil moderno venceria o Brasil arcaico. Mas a lentidão da nossa história mostra que as coisas não são bem assim. Todo esse confuso enredo político destas semanas é cabal demonstração de que mesmo um partido político como o Partido dos Trabalhadores, que se pretende o partido da história e o partido da modernidade, o verdadeiro partido de esquerda, tem uma prática política carregada de arcaísmos. Não só nas ações ilícitas que vêm sendo denunciadas. Mas também nos arranjos políticos corporativos que o sustentam, liames tanto com um novo clientelismo rural quanto com um novo populismo urbano. Ao se propor como um partido popular de excluídos, e não propriamente como um partido socialista de trabalhadores, apesar do nome, o PT se mostra como um partido do Brasil arcaico na sua política social neopopulista e neoclientelista, como é evidente na suplência caritativa de programas como o Bolsa-Família. Uma política necessária, aliás, mas não decisiva nem transformadora. O PT não é um partido de esquerda porque, nessa sua orientação, não se propõe como um partido de emancipação do povo de suas carências e dependências, não se propõe como um partido de libertação, de rompimento da subalternidade dos condenados a prestar homenagem aos donos do poder. Em vários rincões remotos do País ouvi de sertanejos essa expressão, como magoado nome da servidão em que muitos ainda vivem, tendo de, por qualquer motivo, pedir a bênção a quem comanda e decide os direitos dos outros. A corrupção lubrifica essa engrenagem.
No entanto, na lentidão característica de nossa história, tem havido avanços. Esta semana foi adversa para o Brasil arcaico, de direita ou de esquerda. A prisão preventiva de um ex-governador e ex-prefeito, a cassação do deputado que fez a coerente justificativa da indistinção entre público e privado, a revelação das bases do poder retrógrado do presidente da Câmara. E também o encaminhamento dos pedidos de cassação dos novos representantes da ordem. O Brasil legal deu passos para passar a limpo o Brasil do costume, para trazer esquerda e direita ao mundo moderno.
Mas ao mesmo tempo, apesar da crise, o declínio do prestígio do presidente, inferior ao previsível e racional, mostra que ele é sustentado pelo próprio carisma, relativamente a salvo do que ocorre com o PT, um carisma que é a expressão mais densa do Brasil arcaico, místico, que trocou a esperança política pela esperança religiosa, ainda que com cara partidária. Os votos contrários à cassação do deputado, que somaram um terço do total, expressam a mesma coisa. E toda a contradição de ordem e progresso chegou ao Supremo Tribunal Federal: ficou clara no habeas-corpus dado aos deputados petistas que estão a caminho da cassação. O Brasil arcaico se protege nos formalismos da lei e dos ritos do Brasil moderno. Necessitam-se reciprocamente.

* José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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